Vicente Pío Marcelino Cirilo Aleixandre y Merlo, nasceu em Sevilha, Espanha, a 26 de abril de 1898. Um dos principais poetas espanhóis do século XX, recebeu o Nobel de Literatura de 1977. Morando em Madrid, conhece o poeta Dámaso Alonso, com quem conhece as obras de Rubén Darío, Antonio Machado e Juan Ramón Jiménez. Publica seus primeiros poemas em 1926, causando boa impressão, mas também sérias críticas por suas posições políticas contra o governo da época. Mesmo com a Guerra Civil, ele não se exila do país e passa a servir de “Mestre” para a nova geração de escritores espanhóis. Vicente Aleixandre faleceu no dia 13 de dezembro de 1984, em Madrid.

SONHO IMPURO

Vã verdade de um corpo ainda insistente.
Olhos negros. Mais luz. Cristais. Reflexo.
Quando o ocaso se afunda em noite pode-se
ignorar outros olhos. Negros são noite, e como noite cegam.

Porém, a noite é nada: sonho, impuro
pois há um alento vivo ainda em suas margens.
As tenebrosas ondas solicitam.
Nada vejo, nada sei. A alva, ou nunca.

O LIMITE

Basta. Não é insistir o longo brilho
de teus olhos. Ali, até ao fim do mundo.
Olhei e consegui. Contemplei, e passava.
A dignidade do homem está na sua morte.
Mas os brilhos temporais dão
cor, verdade. A luz pensada, engana.
Basta. No caudal da luz – teus olhos – pus
a minha confiança. Por eles vi, vivera.
Hoje que piso no meu fim, beijo estas margens.
Tu, minha limitação, meu sonho. Sejas!

SOMBRA FINAL

Pensamento acabado, alma sombria,
que és aqui, que longamente beijo?
Alma ou osso letal, vulto não aceso
que imóvel a minha febre consumia.

Aqui cega a paixão desfez-se fria,
aqui meu coração bateu obsesso,
tenazmente insistiu, pulsou opresso.
Aqui minha boca perdeu sua alegria.

Entre meus braços cega te prendi,
sob o meu peito respiraste amada,
do meu sangue o pulsar viveu em ti.

Oh noite escura. Já não espero nada.
A solidão não mente ao que há em mim.
Reina a pura sombra sossegada.

O ESQUECIMENTO

O teu final não é como uma taça vã
que é preciso esgotar. Arremessa-a fora e morre.

Por isso lentamente ergues em tua mão
um brilho ou sua menção, e ardem teus dedos,
como súbita neve
Está e não esteve, mas esteve e cala-se.
O frio queima e em teus olhos nasce
sua memória. Recordar é obsceno;
pior: é triste. Esquecer é morrer.

Dignamente morreu. A sua sombra passa.

OUTRA VERDADE

A volubilidade
do vento anuncia
outra
verdade. Escuto ainda, e nunca,
esse silvo inaudito
na penumbra.
Oh, cala-te:
escuta.
Mas a boca está quieta
e não modula
esse rumor misterioso que oiço
no nível dos beijos. Brilhe,
brilhe tua boca sua tepidez ou raios
do sol que a boca muda assustam,
como outros lábios cegos.
Ah sede impura
da luz, sede viva ou morta, em boca
última.

TENS NOME

Teu nome,
pois tens nome. A minha vida inteira foi isso:
um nome. Porque o sei não existo.
Um nome respirado não é um beijo.
Um nome perseguido sobre uns lábios
não é um mundo, mas o seu sonho às cegas.
Assim sob a terra, respirei a terra.
Sobre o teu corpo respirei a luz.
Dentro de ti nasci: morri por isso.

O POETA

Para ti, que sabes como a pedra canta,
e cujas delicadas pupilas conhecem já o peso de uma montanha sobre uns olhos doces,
e como o ressoante clamor dos bosques adormece suave um dia em nossas veias;

para ti, poeta, que sentiste em teu hálito
a investida brutal das aves celestes,
e em cujas palavras tão depressa voam as poderosas asas de águias
como se vê brilhar o dorso dos ardentes peixes silenciosos:

ouve este livro que às tuas mãos envio
com um gesto de selva,
mas onde de súbito uma gota fresquíssima de orvalho brilha sobre uma rosa,
ou se vê pulsar o desejo do mundo,
a tristeza que como pálpebra dolorosa
cerra o poente e oculta o sol como uma lágrima escurecida,

enquanto a imensa fronte fatigada
sente um beijo sem luz, um longo beijo,
umas palavras mudas que o mundo diz agonizando.

Sim, poeta: o amor e a dor são o teu reino.
Carne mortal a tua, que, arrebatada pelo espírito,
arde na noite ou se ergue no meio-dia poderoso,
imensa língua profética que lambendo os céus
ilumina palavras que dão a morte aos homens.

A juventude do teu coração não é a praia
onde o mar investe com suas espumas quebradas,
dentes de amor que mordendo as orlas da terra
bramam docemente aos seres.

Não é esse raio vigilante que subitamente te ameaça
iluminando um instante a tua fronte nua,
para mergulhar em teus olhos e incendiar-te abrasando
os espaços com tua vida que de amor se consome.

Não. Essa luz que no mundo
não é cinza final,
luz que nunca se abate como pó sobre os lábios,
és tu, poeta, cuja mão e não a lua
eu vi nos céus uma noite a brilhar.

Um peito robusto que repousa atravessado pelo mar
respira como a imensa maré celeste
e abre os seus braços jacentes e toca, acaricia
os extremos limites da terra.

Então?
Sim, poeta, arremessa este livro que pretende encerrar em suas páginas um cintilar do sol,
e olha a luz face a face, a cabeça apoiada na rocha,
enquanto teus pés distantes sentem o derradeiro beijo do poente
e tuas mãos erguidas tocam suavemente a lua,
e teus cabelos soltos deixam sulco nos astros.

*Poemas do livro “Antologia de Vicente Aleixandre”, Editorial Inova/Port0, 1977. 
Tradução de José Bento.