Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudônimo Lewis Carroll, nasceu em Daresbury, na Inglaterra, a 27 de janeiro de 1832. Conhecido mundialmente pelo clássico “Alice no País das Maravilhas”, de 1865, além de romancista, também foi poeta, desenhista, fotógrafo, matemático e reverendo anglicano britânico. Considerado precursor da literatura nonsense, é um dos nomes mais relacionados à poesia de vanguarda.

Charles começou a escrever poesia e contos ainda criança. Entre 1854 e 1856, alguns de seus trabalhos foram publicados em jornais e revistas do país, quando adotou o pseudônimo Lewis Carroll. Neste período passou a frequentar o círculo social dos Pré-Rafaelitas. A maioria de seus textos já apresentavam natureza humorística e por vezes satírica. Críticas sociais, políticas e metáforas da vida, são os temas principais de suas obras, sempre apresentadas em cenários extremamente lúdicos e imagéticos.  

Lewis Carroll faleceu em Guildford, Inglaterra, no dia 14 de janeiro de 1898.

Fatos

Se eu mirasse me rifle no arrebol
E disparasse um tiro contra o sol,
A bala acertaria o alvo, um dia,
Mas, antes, por cem anos voaria.

Mas se a bala, alterando o próprio rumo,
Aos planetas se dirigir a prumo,
Nenhuma estrela acertarei jamais:
A mais próxima está longe demais.

Regras e Regulamentos

Breve regulamento
Contra o abatimento:
Fazendo variações
De suas ocupações,
Com bom prolongamento
Do seu divertimento,
Com vasta discussão
Da sorte da nação
E achando adequação
À sua posição,
Juntando muita gente,
Amigos e parentes,
Fugindo à amputação
E à escoriação,
Fazendo variações
Em suas conversações,
E exercitando o entendimento,
Assim se evita o abatimento.

As Baladas Poderosas Nº 1

Dia molhado: e a chuva a despencar
Espessa feito marmelo.
O galinheiro se encheu dum ribombar:
Batidas dum martelo
E dois rapazes sobranceiros;
Pela janela, dava para enxergá-los
Cortando um velho tronco pra fazer poleiros,
Dando, a cada minuto, até cem talhos.

Findo o trabalho, enfim subiu ao ninho
Dona Galinha, e ali ajeitou os ovinhos,
Sem pensar em comê-los com toucinho
(Ao menos é o que eu acho, ou adivinho).

Cada casquinha então resolve
Para ver como está sua prole;
Depois espiou em meio às palhas
Querendo ver se havia falhas;
E circulou o galinheiro,
Temendo um rato sorrateiro;
Depois deitou-se calmamente
A descansar, muito contente,
Dobrando as patas com cuidado.
O tempo foi passando, e as cascas se quebrando,
“Sumindo aos poucos e encolhendo lindamente”,

E a sábia mãe com sortilégios vai bicando,
Forçando cada ovo a expressar sua mente.
Mas, oh! “tão imperfeita é a expressão”,
Algum poeta disse. Quem? Só Deus sabe.
Quem quiser descobrir, busque em outra parte.
Mas posso ao menos garantir um fato:
Do Parlamento nunca viu uma Sessão;
Se visse, com certeza apreciaria a arte
Dos oradores, seus apupos, cantos, brados;
Mudaria a opinião. Ficaria encantado.
Quanto ao nome do poeta, algo está bem claro:
Você é que não era, e muito menos eu!

Eis que houve, um belo dia,
(Belo, mas que logo ficou feio):
Na palha, um pinto estremecia,
E a sua vida se esvaía;
Já sem frescor, sem alegria,
Brincar, pular já não podia.
“É o fim da linha, amigo pinto?”
Lamuriou-se um dos meninos,
Num angustiado devaneio.
Outro rapaz (um visitante)
Dispara à gare da estação,
Cheio de medo e comoção,
Pensando em casa – urna sibilante -;
Com a passagem dupla corre
E em desespero então descobre
Que o trem partiu, e outro não veio!

Longo demais, falar de cada conjectura
– Suicídio galináceo ou ave assassinada? –
De cada esgar sombrio, das preleções soturnas,
E a vã suposição: “Morreu de uma agulhada?”
As vozes retumbando, os gritos de tristeza,
O pranto e o suspiro, o soluçar dolente,
Até que todos concordaram: “Com certeza,
O pinto se matou, e a mãe é inocente!”

Nem bem foi pronunciado o veredito,
A calma foi rompida por um grito:
Um vulto de criança entrou na multidão,
Correndo, aos prantos, com a voz aflita,
Do tipo que não vem dizer coisas bonitas,
Mas notícias de sombra e perdição.
“Oh, que cena de horror e de maldade,
De enregelar o coração mais forte!
A perversa galinha sem piedade
Bicou outro pintinho até a morte!”

Minha Fada

Tenho uma fada aqui, bem ao meu lado,
Dizendo que não devo cochilar.
Quando gritei de dor, agoniado,
Ela disse: “Não deves soluçar”.

Quando sorri no meio de um festim,
Me disse: “Tu não deves gargalhar”.
Quando uma vez pensei em beber gim,
Me disse: “Tu não deves te entortar”.

Quando meu prato estava sobre a toalha,
Ela disse: “Não deves almoçar”.
Quando, afoito, marchei rumo à batalha
Ela disse: “Não deves guerrear”.

“E o que posso fazer?”, gritei por fim,
Cansado de tentar, tentar, tentar.
E a fada calmamente olhou pra mim
E disse: “Tu não deves perguntar”.

Moral:
“Tu não deves.”

Conto de uma Cauda

Um velho jardineiro colhia groselhas
Num árvore de groselhas; certo dia
Os espinhos espetavam suas mãos velhas
E nem ao menos um “ai” ele dizia.

Ao seu lado, um cão de longo rabo
“Oh, mas que cauda” tão gigante
Nem lá onde perdeu as botas o diabo
Alguém viu coisa semelhante.

A cauda tão comprida era disforme
Com pelagem cinza bem sem graça
Feita de músculo, osso e força enorme
Inadequada a um cão assim sem raça.
Da sua cauda o cão parecia ter orgulho,
Vez por outra
Levantava a cabeça e latia alto à beça.
O homem não gostava desse barulho,
E seguia seu trabalho sem ter pressa.

O cão, de tanto sacudir o rabo,
Enrolou-o nos pés do jardineiro
Deu-lhe um nó tão justo e apertado
Que quase o imobilizou por inteiro.

O jardineiro não conseguia adivinhar
O que estava prendendo suas pernas
Continuou, fatigado, a trabalhar
Furioso, com toda essa baderna.

“Mas qual o problema?”, perguntou
“Eu mal consigo parar em pé.”
Bebi só um pouquinho, recordou.
“Um conhaque com gotas de café.”
“Dois litros de cerveja, e uma boa sopa
De uísque – na verdade até bem forte
E agora, no entanto estou caindo, opa!
Há algo errado, estou sem sorte!”

Relutante, o trabalho ele encerrou
Pra investigar aquele descompasso;
Apanhou o machado e então cortou
Essa causa perversa em dois pedaços.

E ele então se inclinou com alegria
Até ficar azul, arroxeado.
E o cão, a todas essas, só latia,
Com motivos de sobra, ali do lado.

Moral:
“Não fique bêbado.”

No Brejo Solitário

Eu encontrei um homem muito velho
No brejo solitário;
Eu sei que sou um cavalheiro
E ele nem tem salário.
Parei e rudemente perguntei:
“Como ganhas tua vida?”
Mas a resposta não me impressionou,
Foi muito descabida.

Disse: “Eu coleto bolhas de sabão,
No meio do trigal,
Ponho as bolhas no forno, faço tortas,
Coloco pimenta e sal,
Vendo para os bravos marinheiros
Que desbravam as tormentas;
E este é meu ganha-pão, senhor;
A sorte é avarenta.
Eu pensava em multiplicar
Por dez aquela conta,
Mas sempre que voltava a perguntar,
Vinha uma resposta pronta.
Não dei bolas às bobagens que dizia
Mas dei-lhe cutucão e pranchaço:
“Me diz como é que ganhas tua vida?”
E nisso belisquei seu braço.

O velho gentilmente retornou a história
e disse: “Eu ando, eu corro
E quando encontro um vale nas montanhas
Num vapt, lhe ponho fogo.
Daí fazem um caldo que eles chamam
Óleo de Macassar;
Porém, quatro tostões é só o que o fabricante
Aceita me pagar.”

Mas eu pensava num projeto
Pra pintar as botinas dos clientes
De verde-musgo, para que, na relva
Ficasse invisíveis totalmente.
Dei uma bofetada em sua orelha
E perguntei de novo
E retorci sua cabeleira cinza
Com grande estorvo.
Ele disse: “Caço com os olhos do hadoque
Na urze luminosa
E os transformo em botões sobretudo
Na noite silenciosa.
Mas não vendo os botões por moeda de ouro,
Nem troco por nenhuma prataria,
E sim por um tostão, que pode comprar
Nove botõezinhos: uma ninharia.

“Na terra escavo às vezes pães de açúcar
Ou ponho isca para os caranguejos;
Às vezes busco rodas de carruagens
Nos prados benfazejos.
E assim, meu bom senhor” – piscou o olho –
“Eu ganho a minha vida;
E para brindar vossa saúde vou secar
Dois copos de bebida.”

Eu o escutei com atenção,
Tendo o meu plano já cumprido:
Lavar a ponte de Menai
Com vinho refervido.
E agradeci por suas histórias
Especialmente sua intenção
De fazer brindes com cerveja
Por minha salvação.

E se hoje por engano eu grudo
Com cola meus dois dedos
Ou se no pé direito, acaso,
Meto o sapato esquerdo;
Ou se no meio de um discurso
Ponho palavras ao contrário,
Penso naquele estranho andante
No brejo solitário.

*Poemas do livro “Fantasmagoria e Primeiros Poemas de Lewis Carroll”, Editora Piu, 2023.
Traduzido por José Francisco Botelho e Paula Taitelbaum.