Alexandre Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhões, nasceu em Lisboa, Portugal, a 19 de dezembro de 1924. Um dos mais importante poetas do movimento surrealista português, produziu, além dos livros de poesia e prosa, discos de poesia, traduções e antologias. Autodidata, também era conhecido por sua personalidade inquieta e ações combativas aos governos da época. Por conta disso, foi preso por diversas vezes pela polícia política (PIDE), de Portugal. Alexandre O’Neill morreu em Lisboa a 21 de Agosto de 1986, aos 61 anos.

O COTIDIANO “NÃO”

Estamos todos bem servidos
de solidão.
De manhã a recolhemos
do saco, em lugar de pão.

Pão é claro que temos
(não sou exageradão)
mas esta imagem do saco
contendo um pequeno “não”

não figura nesta prosa
assim do pé para a mão,
pois o saco utilizado,
que pode ser o do pão,

recebe modestamente
a corriqueira fracção
desse alimento que é
tão distribuído, tão

a domicílio como
o leite ou o pão.
Mas esse leitor aí
(bem real!) já diz que não,

que nunca viu no tal saco
o tal “não”.
Ao que o poeta responde,
sem maior desilusão:

– Para dizer a verdade,
eu também não…
Mas estava confiante
na sua imaginação

(ou na minha…) e que sentia
como eu a solidão
e quanto ela é objeto
da carinhosa atenção

de quem hoje nos fornece
o cotidiano “não”,
por todos os meios, desde
a fingida distração,

até ao entre-parêntesis
de qualquer reclusão…

O INOMINADO

se eu não fizer
assim (como hei-de
dizer?) amor
sim amor contigo
muitas (meudeus!) vezes
com preguicinhas boas
tolices ao ouvido
revoadas de beijos
repentes dentes
olhares pestanejados com carinho
.                              oh
nem terei nome
serei “o coiso” “esse aí” o “como
é que ele se chama?”
o que dorme singelo
o que ninguém (ai ai) ama.

HAH!

Há a mulher que me ama e eu não amo.
Há as mulheres que me acamam e eu acamo.
Há a mulher que eu amo e não me ama nem acama.

Ah essa mulher!

Tu eras mais feliz, Apollinaire:
montado num obus, voavas à mulher.
Tu foste mais feliz, meu artilheiro:
tiveste amor e guerra.

Eu andei pra marinheiro,
mas pus óculos e fiquei em terra.

Upa garupa na mulher que me acama,
que a outra é contigo, coração que bem queres
sofrer pelas mulheres…

AUTODIDATA

Autodidata, já ia na terceira
fasciculada história da pintura
e olhava o mundo como se ele fora
só uma tela, bem ou mal pintada.

Se acaso em piquenique desdobrava
toalha em relva, logo o Déjeuner
sur l’herbe lhe acudia à retentiva,
mas a nudez alegre é que faltava…

E quando um farroupilha conferia
com o certo retirante da memória,
em portinaris o mundo sacudia
sacos de ossos da sua triste história.

E ao enamorar-se, a breve entrecho
já era El Hombre con la mano al pecho…

A HISTÓRIA DA MORAL

Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.

Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo.

AMANHÃ ACONTECEU…

Que é notícia?

Um hoje que nunca é hoje,
um amanhã que já é ontem
entre ontens que se perdem
no anteontem dos anos
no tresantontem dos lustros…

Que é notícia?

Amanhã acontecido,
notícia é sempre um depois,
é um viver vivido…

Que é notícia?

Notícia é devoração!
Aí vai ela pela goela
que há-de engolir tudo e todos!
Aí vai ela, lá foi ela!

Nem trabalho de moela
retem notícia…

Notícia sem coração!

Que é notícia?

Cão perdeu-se! Por que não?
Cão achou-se! Ainda bem!
Ainda melhor, por sinal,
se o cão perdido e o achado
forem um só e o mesmo
“lidos” no mesmo jornal!

Que é notícia?

Damos notícias um ao outro
do nosso interesse comum.
Fui Cavalheiro amanhã.
Ontem Senhora serás.
Como eu não há nenhum!…

Que é notícia?

Quando o primeiro tortulho
se abre no céu (silhueta
que em símbolo se tornará)
onde estou, estouvava eu?
Estava com a tia Henriqueta…

Que é notícia?

Fechada para balanço,
tia Queta dormitava.
Com a folhinha nos joelhos,
do tortulho, que treslera,
já em feto se engelhava…

Que é notícia?

Das convulsões deste mundo
dava meu pai a versão:
– Ailitla por toda a Europa…
O guarda-roupa, meu filho,
varia, a tragédia não…

Que é notícia?

O bom do velhote ia
na terceira dentição…

Que é notícia?

Alcatruz que se abalança
a tornar à sua água?
Já o de Éfeso sabia:
não se molha duas vezes
o lenço na mesma mágoa…

Que é notícia?

Notícia em primeira mão
na minha mão infantil:
o papagaio empinado
no claro céu da manhã,
meu jornal publicado
por cima de tanto afã…

Mas terá sido notícia?

Que é notícia?

POEMA

No tempo em que os suicidas falavam
Amar-te teria consequências.

Mas teria?
Ou nem uma última ruga
Viria alterar a face das coisas
Dispô-las pela primeira vez a meu favor?

(Uma ruga que me deixasse para sempre limpo
Para sempre autêntico
E que imediatamente me recompensasse
Do ato por excelência cabotino
De desaparecer a deixar rasto
De desaparecer em contração, em convulsão de teatro).

*Poemas do livro “Poesias Completas – 1951/1981), Biblioteca de Autores Portugueses, 1981.