Audrey Geraldine Lorde, mais conhecida como Audre Lorde, nasceu em Nova Iorque, Estados Unidos, no dia 18 de fevereiro de 1934. Estadunidense de ascendência caribenha, se autodenominava “lésbica, mãe, guerreira, poeta”, tornando-se uma das mais representativas vozes feministas de sua época. Usou da força de sua poesia para passar mensagens, sobretudo em relação aos direitos civis e homossexuais. Em seus poemas abordou questões como o racismo, o mulherismo e a opressão. Lorde apresentou a sexualidade numa perspectiva revolucionária, para capacitar as pessoas negras e lésbicas, encorajando-as a se sentirem confortáveis em sua própria pele. Faleceu no dia 17 de novembro de 1992, em Santa Cruz, nas Ilhas Virgens Americanas.

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A unicórnia preta

A unicórnia preta é ávida.
A unicórnia preta é impaciente.
A unicórnia preta foi confundida
com uma sombra
ou símbolo e levada
através de um país gelado
onde a névoa faz um retrato risível
da minha raiva.
Não é em seu colo onde o chifre repousa
mas crescendo nas profundezas de sua cratera
lunar.

A unicórnia preta é inquieta
a unicórnia preta é implacável
a unicórnia preta não é
livre.

Suportar

Choveu por cinco dias
corridos
o mundo é
uma poça redonda
de água nublada
onde pequenas ilhas
estão apenas começando
a suportar
um menino
no meu jardim
está tirando água
de seu canteiro de flores
quando eu pergunto a ele por que
ele me diz
jovens sementes que não viram o sol
esquecem
e se afogam facilmente.

Uma litania pela sobrevivência

Para aquelas entre nós que vivem na margem
de pés sobre limites constantes da decisão
crucial e solitária
para aquelas entre nós que não podem se dar ao luxo
de abrir mão dos sonhos de ter escolhas
que amam em vãos de portas indo e vindo
nas horas entre os amanheceres
olhando para dentro e para fora
ao mesmo tempo antes e depois
em busca de um agora que possa cultivar
futuros
como pão nas bocas de nossos filhos
para que os sonhos deles não reflitam
as mortes dos nossos;

Para aquelas de nós
que fomos marcadas com o medo
como uma linha tênue no meio de nossas testas
aprendendo a sentir medo desde o leite materno
pois com essa arma
essa ilusão de alguma segurança a ser encontrada
esperavam nos silenciar com seus pés pesados
Para todas nós
este instante esse triunfo
Nós nunca estivemos destinadas a sobreviver.

E quando o sol nasce nós temos medo
de que ele não dure
quando o sol se põe nós temos medo
de que ele não levante de manhã
quando nossas barrigas estão cheias nós temos medo
da indigestão
quando nossas barrigas estão vazias nós temos medo
de que o amor desapareça
quando estamos sozinhas nós temos medo
de que o amor nunca volte
e quando falamos nós temos medo
de nossas palavras não serem ouvidas
nem bem-vindas
mas quando estamos em silêncio
ainda estamos com medo.

Então é melhor falar
lembrando
nunca estivemos destinadas a sobreviver.

Um pequeno assassinato

O dia rompe sem cuidado ou gratidão
depois de uma noite sem satisfação nem dor.
Minhas palavras são crianças cegas que armei
contra a insolência casual da manhã
sem você
estou cheia de cicatrizes e à venda
como uma esquina do Harlem
uma mulher
cujo rosto nos azulejos
seus pés ainda não observaram
eu sou o córrego
passando por onde você nunca pisará
a mulher com que você não pode lidar
eu sou a boca
do seu desdém.

Promessa futura

Essa casa não vai durar para sempre.
As janelas são robustas
mas lacradas
como soluções individuais
que funcionam uma de cada vez.

O telhado tem goteiras.
Em dias de chuva persistente
eu olho para cima para ver
as quinas chorando
silenciosamente.

As escadas estão firmes
debaixo dos meus filhos
mas de tempos em tempos
uma farpa se solta
enfiada num pé de criança.

Sonho com escadas
afundando
no silêncio
bem usadas e satisfeitas
não mais necessitadas
de ficarem intactas

Uma vez
libertada da constância
essa casa não vai durar
para sempre.

Balada para cinzas

Ninguém vive!
gritou o homem magro
no alto dos degraus de pedra ensolarados
da minha casa
sonhando
que ele mentia
eu o vi chegar
voando
aterrissando no chão
com um baque.

Toquei seu rosto machucado
com meus dedos
no sol baixo.

Um homem engatinhou
até a xícara dourada
e implorou por uma bebida
a água estava gelada
mas as bordas de ouro
abriram seus lábios como uma peneira.

Refrão

Sol
faça-me inteira novamente
para amar
as verdades estilhaçadas em mim
espalhadas como dentes de dragão
através das mentiras quentes
daquelas que dizem que
me amam
quando eu acabar
cada caco se erguerá
inteiro e armado
como uma guerreira
difícil de encarar
deslizando pelos becos
de noites musicais com pessoas cantarolando
Mozart
era um cara branco.

*Poemas do livro “A unicórnia preta”, editora Relicário, 2020.
Tradução de Stephanie Borges.