Anna Clara de Vitto nasceu em Santos, São Paulo, em 1986. Autora dos livros “Água indócil” (Urutau, 2019) e “MEADA” (ed. da autora, 2019), desde 2017 integra a coordenação do Clube da Escrita para Mulheres, fundado pela escritora, cordelista e poeta Jarid Arraes. Possui poemas publicados nas revistas Ruído Manifesto, Mallarmagens, Germina Literatura, Plural, Fazia Poesia, Literatura e Fechadura, Diversos Afins, Escrita Droide, Cassandra, Ensaio, Desvario, entre outras. Além das publicações esparsas, ministra oficinas de poesia e participa de saraus, performances poéticas, podcasts, leituras e mesas de debate.​

sonilóquio

mil nomes
povoam-me a solidão insone
hasteio um estandarte
de promessas impossíveis
nos quadris desertos

trago atrás das pálpebras
um repositório de rostos estranhos
estampados em instantâneas tortas

as paredes absorvem as preces
que escapam de lábios inconscientes
e refugio nos lençóis revirados
os sonhos a esquecer

c.q.d.

ouço o chamado
subo ao tablado
escolho o giz
traço a solução

dentro da boca
sinto dedos
extraindo dados

escuto risadas
a sala escurece
recebo a avaliação:

a única resposta aceitável
envolve o perfeito funcionamento
das lâmpadas da casa

os dedos sobem para os olhos
contaminam as escleras
com ciscos

forço a vista
limpo a garganta
os dedos descem
emudeço:

impossível ter argumentos
com tantos pedaços
nos meus orifícios

quod erat demonstrandum

decênio

há dez anos
que o meu braço esquerdo
queima

dez anos
e na verdade
eu não me lembro
qual braço

mas não esqueço:

dez anos
que alfabetizados
meus ouvidos
na tua língua odienta

afasta de mim
essa saliva
infecta

que desfecho:
disseste
que de mim
nada sobraria

nada

nada de festas
nem traço

(larga do meu braços moço
eu peço
e peço
e peço
e me despeço)

nem fração
dez anos
que ando sobrando
escorrendo
pelos dedos pegajosos
das ruas
de miasmas masculinos

de mim sobrou
quase tudo
menos o medo

NÃO HÁ VAGAS

as mulheres e as construções
envelhecem antes do mundo

embolorecem em véus de chuvas
a toldar-lhes os desgostos:

suas fachadas sujas
desbotam-se
desgraçam-se
sujeitas ao mesmo sol
de muitas vidas

as raivas das mulheres
são nódoas em lençóis rotos
expostos na vertigem dos varais

as mulheres-edifício
abrigam moradores
demais

a primeira tempestade

deveria sair da varanda
a ventania pode estourar as vidraças

mas seria bonito ficar parada
no vórtex de estilhaços

cristais cortantes
por todos os lados

o cadáver apresenta
ferimentos pérfuro-contusos

meio barro no breu
lanternas nalgum quintal

ela tem medo
do que acontece no escuro

espere ao menos
eu terminar este verso, querido

sem amor e com gosto

não há amor nas trincheiras do desejo
costas unhadas contra o piso de madeira
dizem que esse tipo de coisa voltou à moda
esqueci o meu e o teu nome nos fundos e bordas
de copos americanos
esqueci como se ama
antes de perder o juízo alheio
eu posso sorrir
posso te beijar a testa a boca o peito
posso até jurar
o que se jura no altar
da boca para fora e
do resto para dentro
mas não há amor nos lustres
nas paredes nos vitrôs nas pias nas bancadas
desisti do amor
com os joelhos bem separados
eu termino primeiro
terminas me beijas me acaricias o rosto
acho graça
eu sinto calor e sono e pena
levanto sem me vestir e sujo
teu assoalho
não te importas
sabes que sempre há
quem limpe

*Poemas do livro “Água Indócil”, editora Urutau, 2019.