Christovam de Chevalier nasceu no Rio de Janeiro, a 11 de fevereiro de 1976. Poeta e jornalista, é filho da também jornalista, atriz e escritora, Scarlet Monn, falecida em 2013. Trabalhou no jornal O Globo e no Jornal do Brasil, além de colaborar com as revistas GQ, Joyce Pascowitch, entre outras. Apontado como um dos mais representativos nomes da poesia brasileira de sua geração, por poetas como Ferreira Gullar e Jorge Salomão, possui 5 livros publicados, além de participações em importantes antologias. Atualmente, Christovam edita e desenvolve o site multicultural www.NewMag.com.br

Constatação

Entreguei-me à lida da escrita.
Se fiz mal ou bem, eu não sei.
Sigo e persisto nesta desdita:
perder o que sequer encontrei.

A vida real
.                                    a Alice Monteiro

Não há
melhor
música
que a
chuva.

Não há
tela
maior
que a
janela.

Marinha
alguma
supera
o mar
em suma.

A poesia
no anil
do dia
no azul
de abril.

O vagido
da vida
no mundo
só se ouve
a fundo.

As coisas
não estão
na tela
que temos
nas mãos.

Pelo prazer de escrever
.                                        “Os jovens vieram depois de mim
.                                          E estamos todos aqui”
.                                                             Arnaldo Antunes

Um poeta garotão
discute com outro
da mesma geração
qual é o mais fausto.

Riem do que é pretérito
zombam e sobem o tom
trocam eles impropérios
e saem os dois na mão.

Longe dali, outro poeta
alheio àquela contenda
tem uma ideia e a anota.
Não vai perdê-la por nada.

A ideia é ainda lampejo
algo que pode vir a ser
poesia. Insiste o moço
pelo prazer de escrever.

É esse o seu ofício
assim o poeta segue.
E os poetas do início?
O Diabo que os carregue!

Ainda (as)sim

Pode não dar em nada
pode ser que não cole
quem sabe uma cilada
pode ser que não role.

Mesmo que não dê em nada
terá valido a pena
a alegria, a gargalhada
a dor será amena.

E, para isso, vale ter
o ardor de ter vivido.
É sempre melhor ser
ainda que esquecido.

Falso brilhante

Se gay
ou bi
alguém
aqui.

Tento
o tinto
branco
brinco

brado
brindo
tranco
trinco.

Se gay
ou bi
pleno
de ti.

Pisco
seduzo
arrisco
arraso

Prossigo
socrático
proscrito
sarcástico.

Nem um
nem outro
nem gay
nem bi.

Nenhum
encontro
ninguém
aqui.

Depois das dez

Saiu, sorveu e serviu-se
do vesgo visgo da vida.

Numa talagada, o gole
salva a seiva na saliva.

A louça louçã lascada
lábia e labor nos lábios.

A tinta tanta do tinto
guarda o guardanapo.

Tempero e temperatura
na intempérie do tempo.

Pelo centro da cidade

Homens seguem contritos
atentos à tela do celular.
Têm rostos e olhos aflitos
sem nada, nada encontrar.

Andam sem olhar ao redor
sem ver o que está no chão
como se soubessem de cor
o que pisam e onde estão.

Pisam poças, pedras, preces
papéis picados sem valor
pisam folhas, falhas, fezes
um candidato a vereador.

Pisam cédulas rasuradas
filipeta que dá desconto
novenas abandonas
slogans de mães de santo

manjada promessa de trazer
em três dias a pessoa amada
(Se ela virá de fato, vai saber
sonhar é mais do que nada).

Absortos e compenetrados
são cuspidos das estações
e rumam destinos abstratos
sempre que rompe a manhã.

Trocam os vagões lotados
por escritórios, repartições
onde estarão amontoados
agora às vistas dos patrões.

Entregam-se às suas tarefas
demandas e metas a cumprir
até que a doença ou a estafa
tirem-nos desse louco ir e vir.

No que serão substituídos
por terceiros e outros tais
ambiciosos e aguerridos
a bater metas mais e mais.

E as ruas serão tomadas
por muitas outras gentes
que seguirão atordoadas
sem ver nada pela frente.

Se verem coisa alguma
além da tela do celular.
São espectros em suma
e, assim, estarão a vagar.

*Poemas do livro “da lida, do tanto, da vida”, Editora 7 Letras, 2024.