Czesław Miłosz nasceu no dia 30 de junho de 1911, em Kėdainiai, Lituânia. Um dos escritores mais importantes do século XX, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1980. Reconhecido por seu pensamento humanista sobre a liberdade, a consciência e o “poder do totalitarismo sobre corpos e mentes”, tornou-se líder da “Escola Catastrófica” da poesia polonesa, fazendo da sua obra um verdadeiro ato político, principalmente contra a ocupação nazista em Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial.
Milosz nasceu em família de ascendência polonesa na Lituânia, quando o país ainda pertencia ao Império Russo, contudo, viveu boa parte da juventude em Varsóvia. Após completar seus estudos, foi morar em Paris, onde ficou entre 1934 e 1937. O período na capital francesa foi crucial para absorver novas ideias estéticas e políticas dos círculos de vanguarda.
Aliado ao partido comunista polonês, foi duramente perseguido durante a Segunda Guerra Mundial, tendo que viver clandestinamente. Apesar disso, a guerra foi um dos períodos onde mais publicou, principalmente poemas de resistência que se tornaram verdadeiros brados de luta. Após o conflito, Milosz foi adido cultural do novo governo, mas, em 1951, decidiu deixar o país desiludido com o regime. Em 1960, o poeta emigrou para os Estados Unidos, onde continuou escrevendo sobre as mazelas da corruptibilidade humana.
Czesław Miłosz faleceu no dia 14 de agosto de 2004, em Cracóvia, na Polônia.
Um pobre poeta
O primeiro movimento é o canto,
A voz livre preenchendo montanhas e vales.
O primeiro movimento é a alegria,
Mas ela é tomada.
E quando os anos mudarem o sangue
E mil sistemas planetários nascerem e se extinguirem do corpo,
Eu me sento, poeta ardiloso e irado,
Com os olhos maldosamente cerrados,
E pesando a pena entre os dedos
Planejo vingança.
Molho a pena e repontam nela brotos e folhas, se cobre de flores,
E o perfume dessa árvore é impudente, porque lá, na terra real,
Árvores assim não crescem e é como um insulto
A toda a gente que sofre o perfume dessa árvore.
Uns se protegem no desespero, que é doce
Como o tabaco forte, o trago de vodca na hora da perdição.
Outros têm a esperança dos tolos, rósea como um sonho erótico.
Outros ainda encontram paz na idolatria da pátria,
Que pode durar muito,
Mas não muito mais do que perdure ainda o século XIX.
A mim, porém, foi dada uma esperança cínica,
Pois desde que abri os olhos nada vi senão clarões e carnificinas,
Senão dano, humilhação e a irrisória infâmia dos soberbos.
Me foi dada a esperança da vingança contra os outros e contra a mim mesmo,
Pois eu fui aquele que sabia
E não tirou disso para si qualquer proveito.
Fuga
Quando fugimos da cidade incendiada,
Na campina, voltando atrás a vista incerta,
Eu disse: “Que a relva cubra as nossas pegadas,
Que emudeça no fogo o brado dos profetas,
Os mortos contem aos mortos quanto se via,
Nova estirpe nascerá de nossa semente,
Feroz, livre do mal e do bem de outros dias.
Vamos”. E a terra abriu sobre uma espada ardente.
Sobre os anjos
Tiraram suas vestes brancas,
Suas asas e até sua existência,
Eu, no entanto, acredito em vocês,
Emissários.
Ali onde se desdobra o avesso do mundo,
Tecido grosso bordado de estrelas e de bichos,
Vocês passeiam, observando o feitio veraz dos pontos da costura.
É breve sua visita aqui,
No alvorecer, talvez, se o céu está limpo,
Na melodia repetida pelo pássaro
Ou no cheiro das maçãs ao cair da noite,
Quando a luz enfeitiça os pomares.
Dizem que alguém inventou vocês,
Mas isso não me convence.
Porque as pessoas também inventaram a si mesmas.
A voz — essa é talvez uma prova,
Pois pertence a seres indubitavelmente claros,
Leves, alados (mas por que não?),
Cingidos de relâmpago.
Ouvi essa voz muitas vezes no sono
E, o que é mais estranho, eu entendia mais ou menos
A ordem ou apelo em uma língua de além da terra:
Já, já, é dia,
mais um
faça quanto possa
Minha fiel língua
Minha fiel língua,
Eu servi a você.
Toda a noite eu punha na sua frente tigelinhas com tintas,
para que você tivesse a bétula e a cigarra e o dom-fafe
guardados na minha memória.
Isso durou muitos anos.
Você era minha pátria, porque faltou outra.
Achei que você seria também uma intermediária
entre mim e as pessoas boas,
mesmo que fossem vinte, dez
ou que não tivessem nascido ainda.
Agora admito minhas dúvidas.
Há momentos em que parece que desperdicei a vida.
Porque você é uma língua de gente aviltada,
de gente insensata e que odeia
a si mesma talvez mais do que as outras nações,
uma língua de alcaguetes,
uma língua de aturdidos,
enfermos da própria inocência.
Mas sem você quem eu sou.
Apenas um acadêmico em um país distante,
a sucess, sem medo e humilhações.
Sim, quem sou eu sem você.
Um filósofo como qualquer outro.
Eu entendo, isso deve ser um aprendizado:
a glória da individualidade subtraída,
diante do Pecador da moralidade
o Grande Renome estende um tapete vermelho
e ao mesmo tempo uma lanterna mágica projeta
no pano de fundo imagens do tormento humano e divino.
Minha fiel língua,
quem sabe entretanto eu deva salvar você.
Vou então continuar a pôr na sua frente tigelinhas com tintas
claras e puras, se possível,
pois no infortúnio é necessária alguma ordem ou beleza.
Pátria
Trombetas em fila acima do horizonte opaco
Erguem-se até os lábios, lentamente.
Florestas encravadas no céu silente.
Caminhos recurvos como tentáculos.
Premidas nas mãos, levantadas com aprumo.
As longas trombetas uivam.
A nós, serenos e viris, e duros,
com seu toque enlutado e simples, elas saúdam.
Tombamos na areia dos caminhos. Rasgamos a relva. Látego.
A melodia freme nas florestas. Queima como vitríolo.
Julgamentos
Tudo passado, tudo esquecido,
só fumaça na terra, nuvens soturnas,
e, sobre os rios de cinzas, asas em
chamas e um sol envenenado se turva
e um fulgor de condenação reponta nas marés.
Tudo passado, tudo esquecido,
então é tempo de te ergueres e fugir,
embora não saibas o pouso, a margem além daqui,
vês tão só que o mundo arde.
E é tempo de odiar o que amaste,
de amar o que odiaste,
de pisar as faces dos que escolheram
a beleza sem alarde.
Pelo vazio, pela avenida, por desfiladeiros mudos
— onde o vento converte toda voz em murmúrio
ou por um sono duro com a cabeça desabada —
seguir. Então… Então tudo em mim era
grito e chamado. Com seu grito e seu chamado
me dilacerava a ceifa de sombrias primaveras.
Basta. Basta. Nada se sonhou, afinal. Ninguém sabe nada
de ti. É só o vento no arame retesado.
Então é tempo. Eu amei essa terra
como ninguém poderia em melhor época,
quando os dias são felizes e as noites, quietas,
quando, sob o arco do ar, sob o portão
das nuvens, avulta a grande aliança
da fé e da força.
Agora tens de cerrar firme os olhos,
porque se amontoam montanhas, águas e cidades,
e o que se mantinha oprimido — quedará por diante,
o que seguia adiante — tombará para trás.
Sim, só aquele de sangue mais férvido há de
se erguer entre as cabeças da manada galopante
e virar para o chão, com um grito, a espada que traz.
Passado, passado, ninguém recorda culpa alguma,
apenas árvores, como âncoras no céu revolto,
rebanhos descem das montanhas, ruas em alvoroço,
os raios da roda giram, a fumaça se avoluma.
Tua voz
Amaldiçoa a morte. É determinada a nós injustamente.
Implora aos deuses que morrer seja fácil.
Quem és, esse punha de ambições, avidez e sonhos,
não merece o castigo de uma agonia lenta.
Só não sei o que podes fazer, sozinho, quanto à morte dos outros,
crianças nas chamas, mulheres sob disparos, soldados privados da visão,
essas mortes durando muitos dias, agora, aqui, a teu lado.
Tua piedade não tem casa, tua palavra é muda
e temes a sentença, porque nada pudeste.
Na cidade
A cidade era querida e feliz,
sempre repleta de peônias de junho e lilases tardios,
Com torres barrocas erguendo-se ao céu.
Voltar do piquenique e pôr nos vasos as flores da primavera.
Ver pela janela a rua que se percorria até a escola
(Nos muros, fronteiras nítidas entre o sol e a sombra).
Passear de canoa, juntos, nos lagos.
Excursões amorosas nas ilhas cobertas de vimeiros.
Noivado e casamento na Święty Jerzy.
E depois a confraria brindando em casa nos batizados.
Os concursos de música, oratória, poesia, os aplausos
Na rua enquanto passa o Desfile do Dragão me deixam contente.
Todo domingo, sentado no banco dos benfeitores da igreja.
Uma toga e um cordão de ouro, dádivas dos concidadãos.
E envelheci, sabendo que meus netos seriam fiéis à cidade.
Tivesse sido assim na verdade. Mas fui arrastado
Através de mares e oceanos. Adeus, destino perdido.
Adeus, cidade da minha dor. Adeus, adeus.
*Poemas do livro “[para isso fui chamado]”, Companhia das Letras, 2023.
Tradução de Marcelo Paiva de Souza