José Fernandes de Lemos, mais conhecido como Fernando Lemos, nasceu em Lisboa, Portugal, no dia 3 de maio de 1926. Multifacetado, foi poeta, pintor, artista gráfico e fotógrafo, fazendo parte da terceira geração modernista de Portugal. Fixou residência no Brasil em 1953, fugindo da ditadura de Salazar, e adquiriu nacionalidade brasileira tempos depois. Venceu o Prêmio Anual de Fotografia do Centro Português de Fotografia, Porto, 2001, e, em 2016,  ganhou o Prêmio da Crítica em Artes Visuais da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). A 6 de junho de 2018, foi elevado ao grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Fernando Lemos faleceu em 17 de dezembro de 2019, na cidade de São Paulo.

CEPTI – CIDADE

Em 1953
atravessar a avenida só
para do outro lado
ficar a falar de Deus como se o conhecêssemos…

Ouvir cantar pneus
e continuar a supor que são sempre para os outros
todos os Pschitt ignorantes

Fumar um cigarro entre duas dificuldades
como se fossem dedos

Ir a Paris dizer que bem!…
e voltar por entre tambores cardíacos

para uma cave de cobras e lagartos

e verificar que surge sempre

um iô-iô antes de uma guerra…

AO FOMEM QUE PASSA NA EUROPICA

Aqui – armigrante desraça
de samba  desemba-raça
americarne latirnamente

Sente americar
cara rente   armara art
latinaquent

Americar   nort   ar   brasent
dorente  calorente

ame  rica  noar
amerricagem  amerita  rota
late  atitude  ente

Amare  danarte
norte  marte  fort
proenfarft  USARt  usa
usamericamente amem-te

Ámen.

AMOR-TE SER

Segredo da Origem à
mão através do Verbo
começar.

Saber ou sensual dever
destruir são do ter-minal
amar.

Par-e-passo posse
metamorfose animus per
mudar.

Curtir no duplo sal
simétrico anima-mal dito
gerar.

Dar essencial-mente o corpo
circular retorno do querer
golpear.

Afligir no incessante rigor
acalentado grito a pôr biforme
espasmar.

POEMA ABANDONADO
POR PUDICÍCIA

deus
por dentro nascido
caroço de homem
estável
precário gemido
endurecido nó
do improvável

ESTÍMULO

então  vamos
levantou a cabeça  pense
mexeu o pé  ande
abriu a mão  mate
abriu a janela  chore
abriu a boca  coma
cumpra-se  amarrote a alma
até o último pingo de sangue

esticou o corpo  enterre-se
perdeu a fé  estrume-se
há outros famintos
para ocupar o seu lugar

esta cela urinada
é o nosso diploma
móveis centrífugos
somos os seus vermes
fatias laterais
de esqueletos aqui largados

do lado de fora
nem o sol nos merece
estamos hirtos
aparafusando o túmulo
de turva memória

*

só uma teia de aranha
rascunho cicatrizado
que vem do muro farpado
sai enferrujado
pelo esgoto do presídio

o estrondo de nossas mortes
entra como a brisa
que repartimos
juntos com a sopa
musgo da sentença

ficamos sob olhares tatuados
na obscenidade  lida sem pálpebras
decalcados no gelo

*

Ambições
não tenho
mas alguém corre  sozinho
nos meus sonhos

amargo  medíocre
esta mensagem
torpedos
que alcanço
garantias não tenho
mas alguém
se encontra sozinho
nos meus sonhos

e é tudo

*Poemas do livro “Elogio da Sombra”, Porto Editora, 2019.