Luiza Neto Jorge nasceu em São Sebastião da Pedreira, Lisboa, Portugal, a 10 de maio de 1939. Poeta, professora e tradutora, é uma das mais importantes escritoras de sua geração, sendo considerada a personalidade de maior destaque do grupo de poetas do movimento lusitano “Poesia 61”. Foi casada com o escritor  com o escritor António Barahona e fez parte de um grupo de artistas que se reunia no Café Aliança, e que era frequentado especialmente por escritores e poetas, como José Afonso, Gastão Cruz, Casimiro de Brito e António Ramos Rosa.  Luiz Neto Jorge faleceu em Lisboa, no dia 23 de Fevereiro de 1989.


O POEMA ME ENSINA A CAIR

O poema me ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

PELO CORPO

infinita invenção
de pétala a escaldar
desprende o falo

a palavra sublinhada
que é ele a avançar-me
pelo corpo

a porta giratória
que me troca
pelo homem e, a este,

o fértil trajo
que lhe cria mais seios
pelo corpo

ENDECHA DOS MAIS NOVOS

Enquanto o nosso coração voraz
bate a descompasso com o da Terra,
não queremos ripostar à guerra,
fugimos de apostar demais na paz.

Compêndios de nojo, actas de festa,
são escritas tremida para nós,
mas não se lembrem doutores de erguer a voz
a dizer o que purga e o que molesta.

Só a voz do sangue ouvimos bem
quando ao leme do ventre almareámos;
fomos inocentes, já nos naufragámos,
corpos de delito, almas de refém.

EU, ARTÍFICIE

Atento agora ao traço,
corrijo o mais da matéria,
ergo a minha arte do poço
onde flutua.

Como o brilho se desprende
do metal mais bravo,
no forro de cada um
o desgaste é tanto

que eu, artífice, colho
o que de mim alimenta,
falo do que estou sendo,
da sua mão em desordem,
dos passos, das lágrimas baixas
que se vão constituindo.

<<MONUMENTO ÀS AVES>>

Com a exacta segurança do guindaste
erguem-se transportando
o peso intenso
do objecto que se ergue

Atmosfera de pássaros
(mágicos cavalgando a
alta realidade)
montanha aérea transporta
por nós aves

O peso desses gordos pássaros
o extenso facto de voo dessas aves
conduz a nossa emigração

EXORCISMO

o sangue o suor
a água lustral
o leite do sol
retido na mama
o sangue sangrando
com o vinho
o pranto o vinho
tinto no mijo
de deus no sangue
descendo na urina
subindo água
benta no sangue
o filtro do amor
filtrando o suor
um licor dividindo
o choro do pus

DEITA-SE COMO UM OBJECTO

Deita-se como um objecto
um metal fundido
entregue ao seu peso a si

Quando ele se ergue
debaixo do peito tem a sombra
enterrada lá vive a mulher
espaço
habituado a fêmea

Vivendo imposta ao espelho
retocando os seios
como os sábios sabem
para sair em contacto com a sombra
num terror deixar-se em poucos lábios

*Poemas do livro “Poesia”, Editora Assírio & Alvim, 2023.