Astrid Cabral Félix de Sousa nasceu no dia 25 de setembro de 1936, em Manaus, Amazonas. Poeta, tradutora, professora e funcionária pública, tem quase 20 livros publicados, além de traduções importantes, como as obras de Henry David Thoreau, “Walden, ou a vida nos bosques” e “A desobediência civil”. Foi casada com o também poeta Afonso Félix de Sousa, falecido em 2002.
Como uma poética diversa, tanto no estilo dos poemas quanto nos temas abordados, as obras de Astrid Cabral realçam, sobretudo, aspectos vitais para olharmos e sentirmos a presença da vida em nossas memórias. Sempre ligada aos movimentos literários de sua época, integrou o movimento renovador chamado “Clube da Madrugada”. Como funcionária pública, também exerceu cargos importantes, como Oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores e da Embaixada do Brasil em Beirute e em Chicago.
Recebeu diversos prêmios importantes, como o Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, em 1987, o Prêmio Nacional de Poesia, também da ABL, em 2004, e o Troféu Rio de Personalidade Cultural 2012, da União Brasileira de Escritores (UBE). Aos 86 anos vive no Rio de Janeiro.
REVELAÇÃO DO VENTO
Quietas quedam-se árvores.
A flor, o singular alarde
da discreta vida em surdina.
No entanto, se ágil na tarde
o ar acorda e o pranto sopra
as árvores se põem loquazes:
gesticulam abraçam dançam
sussurram cochicham cantam.
É quando súbito enxergamos
a prisão dos troncos e ramos
e a longa noite das raizes.
MATANDO A FOME
Nas lanchonetes moscas tontas
sobrevoam zumzum os suspeitos
croquetes e zunem ferozes
liquidificadores engolindo
cores e volutas de frutas:
adeus, esféricas maçãs e pêras,
adeus cilíndricas bananas,
oblongos melões amarelos.
Oh morangos, vosso rubro rubor
empalidece anêmico na mistura
anônima de sucos e lucros!
Sabemos que nos doces doces
de avoengas aparências
mortíferos corantes recriam
o pseudo sol das velhas gemas
e são embuste as coxinhas
de galinha de vaga etiologia
e os pastelões de vento
que prometem e negam recheios.
Contudo vamos matando a fome
comprando a morte de permeio.
Oh sanduíches sabendo a nitrito
mostarda e sangue de ketchup!
E vamos aflitos mastigando
em fôlegos de ânsia e cansaço
não só a pasta, a massamatéria
mas amargas magras lembranças
a crônica carência de conversa
as palavradas travadas na goela
e vamos, afinal que jeito?
Juntamente com outros venenos
ruminando o escasso afeto
a louca pressa. Tudo com efeito
exercício de lúcido suicídio.
EXTRAVIO
Não de convicções
mas de dúvidas me faço.
Perguntas que são espadas
crivam-me as crenças de ontem.
Perdi a chave de velhos símbolos
e de pânico enredei meus enigmas.
Anoiteceu-me em trevas
o cristal do dia antigo
e sobre abismos de bruma
voga o coração sem rumo.
Onde se coordenam anjos e demônios?
Quem são esses se nos disputam?
Pairo pela amplidão dos momentos,
cabra-cega estrela no espaço-luz.
O GRANDE DRAMA
O grande drama sempre foi
não ter à mão a prova real
(nem sequer a dos nove)
e assim extraviarmo-nos
no rodamoinho das hipóteses
sobre a maneira do mundo
caso os dados de outro jeito
houvessem tombado no chão
dos múltiplos tabuleiros.
Não saber como seria a vida
se diferentemente tivéssemos
geridos às árduas contingências
que nos espreitam a sina
ou outramente trançado
as tramas em que nos enredamos.
Não saber dos destinos cortados
ao cumprir a rota
deste ou daquele caminho
ou dos amores que abortamos
ofuscados pela faiscante
luz de algum mais próximo.
O grande drama sempre foi
essa miopia metafísica
de jamais roçar o avesso
e a instante nenhum saber
de que aquilo que nos cerca
é fim ou quem sabe começo
e desconhecer se o que temos
por acerto não passa de erro.
As batalhas que ganhamos
por ventura não são derrota
à lúcida luz das estrelas?
Acaso o que chamamos de sorte
não é o selo de nossa morte
ou o que chamamos de morte
não é mesmo a grande sorte?
INICIAÇÃO
Infalível, dia após dia
mergulhas no mar das trevas
decúbito na cama esquife
entre lençóis mortalha.
O cansaço te prostra
e arrasta pelas sendas
abissais do nada.
Em parêntesis de tempo
sonhos irrompem tênues
devolvendo-te do mundo
quebra-cabeças e farelos.
Firme instala-se o hábito
da ausência e da renúncia:
vais ensaiando a morte,
última exigência do corpo,
em teu colchão de espuma.
MÃE
Com teu sangue e tua seiva
teces em teu seio o ser
e ao descobri-lo à luz do mundo
o nutres não só do teu leite
mas do limo e do sumo
que mãos em garra, ávida
arrancas à terra avara
e do suor desta tua guerra
mana o rio onde seu corpo banhas
e jorra de tuas lágrimas a fonte
com que lhe amansas as chagas
e te pões integral num esforço
de vísceras, uvas em vinho,
e em teu viço já não floresces
antes na própria sombra
te alongas e te esqueces
e a condição de adubo
te enriquece.
MODO DE AMAR
Amoro com tremor de terra
abalando montanhas e minérios
nas entranhas da minha carne.
Amor como relâmpagos e sóis
inaugurando auroras
ou ateando faíscas e incêndios
nas trevas da minha noite.
Amor como açudes sangrando
ou caudais e tempestades
despencando dilúvios.
E não me falem de ruínas
nem de cinzas, nem de lama.
O VINHO DA EMOÇÃO
Derramo o vinho da emoção
em taças de palavra e papel.
O tanto que de suas bordas en-
torna me flui pelas fendas
de líquidos olhos, gira monjolos,
esporeia sonolentos cavalos
acordando o ímpeto dos coices,
solta cães de amolados caninos,
libera cobras das vaginas das covas.
Atrás da gagueira ou tímida
mudez dos lábios lacrados,
além de recursos da fala,
de todo e qualquer vocábulo,
minha emoção é terremoto
que me abala e me destrói.
*Poemas do livro “De déu em déu”, editora Seta Letras, 1998.