Myriam de Castro Lima Fraga nasceu em Salvador, Bahia, no dia 9 de novembro de 1937. Poeta, escritora e jornalista, ocupava a cadeira número 13 da Academia de Letras da Bahia. Colunista do jornal A Tarde, entre 1984  e 2004, foi também a primeira diretora da Fundação Casa de Jorge Amado. Durante a década de 80, esteve à frente de projetos pioneiros na Fundação Cultural do Estado da Bahia, quando coordenou a Coleção dos Novos e foi responsável pelo projeto de criação do Centro de Estudos de Literatura, hoje, Departamento de Literatura. Com poemas traduzidos para o inglês, espanhol, francês e alemão, participou de diversas antologias no Brasil e no exterior. Sua produção poética retrata questões sociais específicas do Nordeste e traz representações da Bahia, mas também busca uma construção do feminino, ressignificando figuras e temas da mitologia. Myriam Fraga faleceu no dia 15 de fevereiro de 2016, em Salvador.

A ESFINGE

Revesti-me de mistério
Por ser frágil,
Pois bem sei que decifrar-me
É destruir-me.

No fundo não me importa
O enigma que proponho.

Por ser mulher e pássaro
E leoa,
Tendo forjado em aço
Minhas garras,
É que se espantam
E se apavoram.

Não me exalto.
Sei que virá o dia das respostas
E profetizo-me clara e desarmada.

E por saber que a morte
É a última chave,
Adivinho-me nas vítimas
Que estraçalho.

SOLÁRIO

Neste verão um doce
Revolver de feridas,
Um dedo passeando,
Aligeirando, nas chagas.

Neste verão de luz
E cor
Um travo amargo,

Como se todos os verões
Doessem
Subitamente na carne.

POSSESSÃO

O poema me tocou
Com sua graça,
Com sua patas de pluma,
Com seu hálito
De brisa perfumada.

O poema faz de mim
O seu cavalo;
Um arrepio no dorso,
Um calafrio,
Uma dança de espelhos
E de espadas.

De repente, sem aviso,
O poema como um raio,
– Elegbá, pomba gira!
Me tocou com sua graça.

Aceso como chicote,
Certeiro como pedrada.

O ABUTRE

O abutre se alimenta
De suas asas
De seus longos vôos
Altos.

Nem a astúcia
Da cobra
Nem a sábia
Mímese dos lagartos
Impedem sua caça.

O abutre fareja
No espaço
Entre o mergulho
E o salto

No coração de ave
A pena mais grave,
O bronze de uma
Pluma, suave
Lembrança de Estinfale.

O GAVIÃO

O que o sustenta
É o centro,
Onde se apóia o compasso.

Ele mesmo faz a rota
Da órbita
Que não ultrapassa.

Assim o vôo é espiral
Amplíssima e regulada,

Expectante planar tranquilo
Em que vibra uma emboscada.

E para que não se sinta
Ausente,
.          desvinculado,
Existe um fio estendido
Em seu olhar imantado,

Um fio que o liga à presa
E que, rápido se enovela
No mergulho vertical

Onde a morte se desdobra
Em grito
Das suas garras

CINZAS

E sempre e sempre
A cinza
Em minha boca

E esta cruz na testa,
Acesa, eternamente,
Como brasa dormida
Que se assopra
E cresce.

Tudo passou…

Porta-estandarte
De um cordão de espectros
Assustadoramente
Escuto, como um eco,
A voz de antigos carnavais
Vibrando.

CHUVA

Reminiscências
A inquietar
Como a chuva nos vidros.

Sei que avança,
Inexorável,
O tempo, com suas marcas,

Sua umidade em rios,
Dissolvendo a paisagem,

Seu mofo, sua
Insidiosa presença
Escorrendo da tarde.

Um gotejar sinistro,
O salitre
Infiltra-se nas frestas
Reacendendo feridas.

Ó coração,
Não te atormentes,
Não te levantes contra mim,
Esquece.

*Poemas do livro “Relicário Latino”, Funalfa Edições, 2004.