Osip Mandelstam, ou Óssip Mandelshtám, nasceu em Varsóvia, Polônia, a 14 de janeiro de 1891. Um dos principais poetas do acmeísmo, movimento modernista da literatura russa, foi preso e morto num campo de prisioneiros stalinista na Sibéria, em 1938, depois de publicar um poema satírico chamado “Epigrama de Stalin”, em 1937. Faleceu no dia 27 de dezembro de 1938, a0s 47 anos. A causa oficial de sua morte é uma doença não especificada.

Em 1956, Ossip Mandelstam foi reabilitado e declarado exonerado das acusações feitas de “contra revolucionário”, em 1938. Em 28 de outubro de 1987 durante o governo de Mikhail Gorbachev, Mandelstam foi inocentado das acusações de 1934 e portanto, totalmente reabilitado. Em 1977, um pequeno planeta, descoberto pelo astrônomo soviético, Nikolai Stepanovich Chernykh, ganhou o seu nome, o “3461 Mandelshtam”.

*

A onda corre e quebra as vértebras de outra onda,
Escrava angustiada atirando-se à lua.
E há os janízaros nas jovens profundezas,
A capital ondina não dorme, em alvoroço
Se torce e cava na areia o fosso.

E através do ar algodoado e sombrio
Enxergaram-se ameias do não-muro ainda.
E caem soldados das espumosas escadas,
Soldados dos sultãos – desfeitos, espargidos –
E por eunucos frios o veneno é repartido.

*

Nas entranhas da montanha mora um ídolo ocioso
Em aposentos infindos, recatados, venturosos.
Do colo lhe está escorrendo a gordura dos colares
A vigiar-lhe o constante vaivém da maré dos sonhos.

No tempo em que era menino – brincava o pavão com ele
De arco-íris indiano o alimento lhe davam,
Com leite o dessedentavam vindo de argilas rosadas,
No carmim de cochenilha à boca-fé não poupavam.

O osso adormecido em nó cego entrelaçado,
Joelhos, braços e ombros inda parecem humanos.
O mansíssimo sorrir na boca lhe está pregado,
Com o osso é que medita e com o crânio sente
– Esforça-se por recordar sua figura de gente.

*

Schubert nas águas, nos pássaros Mozart,
Goethe assobiando pela senda serpejante,
Hamlet em seu passo assustadiço a cogitar
– À turba tomavam pulso nela acreditando.

Talvez antes dos lábios o murmúrio já nascera,
Sem arvoredo caísse a folha baloiçada.
A quem a dádiva de uma obra se faria
Antes da obra já tinha forma traçada.

10 DE JANEIRO 1934
(Em memória de Andrei Bieli)

Por duas ou três frases fortuitas acossado,
Todo o dia repito: farta é a minha tristeza…
Oh, Deus, de que olhos azuis, que gordas, fartas
São as libélulas da morte, que negro o azul do céu.

Onde a primogenitura? O fausto feitio?
Onde o falcão fundido no fundo dos olhos?
Que é da sabedoria? Do amargo esquivanço?
Que é do esbelto talhe? Onde as falas frontais

Embrulhadas como honestos ziguezagues
Do patinador lançado para as frias chamas,
Girando no férreo sopro as penugentas geadas,
Brindando com a azul solidez do lago?

Vieram-te à ideia tríplices soluções de sais
E as vozes dos sábios germânicos, e os brilhantes
Debates dos pioneiros russos, dos nossos maiorais –
Tudo em meio século, meia hora, num instante.

Saiu súbito a música num acosso,
Já não era predadora das cordas jorrando,
Nem para agradar ao ouvido ou ser pasto deleitoso
Mas para os músculos e têmporas palpitantes.

Jorrando para a terna máscara mortuária,
Para os dedos de gesso que largaram a pena,
Para os lábios dilatados, para o reforçado
Carinho do bem o sossego do grão espigado.

Peles de peliças respiravam, apertava-se ombro
Contra ombro, fervia de saúde o cinábrio quente –
Suor e sangue, o sonho no invólucro do sonho
E, dentro, sonhar um meio passo em frente.

E entre a multidão o gravador preparado
Para transferir ao cobre veraz
O que o desenhador no papel carbonizado
Reproduzira só em linhas gerais.

Como se fora eu, das pestanas pendurado,
Esticado de maduro – antes da queda –
Fazendo os múltiplos papéis no tablado
Da coisa única hoje em cena…

<<PELO TURVO ARRAIAL, PELA RUA ESCURA…>>

Pelo turvo arraial, pela rua escura, perdido.
Busco o ramo de lilás, a touca de neve,
O eterno som do moinho – no coche enegrecido.

Só lembro as madeixas cortadas castanhas cobertas
De fumo amargo – não, de ácido gosto a formigueiro
Desvendado – secura de âmbar deixada nos lábios.

Nesses momentos o ar é de um castanho de olhos
E os anéis das pupilas vestem-se de uma orla clara;
E as coisas que eu sei da pele, da pele da maçã rosada…

Mas os patins do trenó rechinavam, rangiam
As espinhosas estrelas olhavam a serapilheira
E troteavam os cascos pelo teclado de gelo.

Única luz: espíneo logro das estrelas; como espuma
De capuz teatral pairando, a vida navega
E ninguém, ninguém dirá: <<do arraial da rua escura…>>

EQUINÓCIO

Há no bosque o verdelhão e uma só medida
Dos versos – a dura das vogais eclética,
Mas só uma vez ao ano a natura debita
A duração como na métrica homérica.

Um dia de furo, cesura, e quando amanhece
Volta o sossego, o rude arrastar,
Os bois no lenteiro e o outro da moleza
De a preciosa nota da cana tirar.

CAMINHEIRO

Sinto é medo, um medo insofrido
Em frente do cume misterioso.
E amo no céu as andorinhas
E do campanário o voo alteroso!

Velho caminheiro, cá me enlevo
Pensando ouvir no abismo, à sua beira,
A pedra a ceder, a bola de neve,
A eternidade na torre sineira.

Se assim fosse! Mas não sou o peregrino
Que saiu dos fólios de antanho,
E o que em mim canta é este destino:

Certo – desce uma avalancha da montanha!
E toda a minha alma está nos sinos,
Só que a música não salva dos abismos!

*Poemas do livro “Crepúsculo da Liberdade”, Editora Assírio & Alvim, 2024.
Tradução de Nina Guerra