Jacques Prévert nasceu a 4 de fevereiro de 1900. em Neuilly-sur-Seine, na França. Poeta, compositor e roteirista, é um dos mais populares escritores franceses, graças à sua linguagem coloquial, senso de humor e jogo de palavras. Chegou a fazer parte do movimento surrealista, em 1925, mas preferiu seguir com seu espírito independente e não se filiar a mais nenhum grupo.

Antes da literatura, Prévert ficou famoso por escrever filmes de grande sucesso durante as décadas de 1930 e 1940. Toda sua obra cinematográfica foi classificada como obras-primas do realismo poético francês. Somente em 1946, estreou na poesia, com o livro “Paroles”, em 1946. Repleto de humor, sátiras e provocações, seus poemas apresentam olhares críticos principalmente ao conservadorismo da sociedade francesa. Prévert ironizou os usos e costumes, o clero e a igreja.

Jacques Prévert morreu no dia 11 de abril de 1977, em Omonville-la-Petite, na França.


Composição francesa

Quando rapazinho Napoleão era muito magro
e oficial de artilharia
mais tarde tornou-se imperador
foi quando ganhou barriga e muitos países
e no dia em que morreu ainda estava
barrigudo
mas só que mais nanico.

Café pingado

É terrível
o barulhinho do ovo cozido quebrando contra o balcão de zinco
terrível esse barulho
quando ele se agita na memória do homem faminto
terrível também a cabeça do homem
a cabeça do homem que tem fome
quando se vê às seis da manhã
no espelho da grande loja
uma cabeça cor de poeira
mas não é a sua a cabeça que ele vê
na vitrine da casa Fauchon
pouco lhe importa essa sua cabeça de homem
não pensa nela
sonha
imagina uma outra cabeça
cabeça de vitela por exemplo
com molho de vinagre
ou cabeça de qualquer coisa que se come
e mexe lentamente o maxilar
lentamente
e trinca os dentes lentamente
pois o mundo se diverte à custa da sua cabeça
e ele nada pode contra o mundo
e conta com os dedos um dois três
um dois três
três dias que não come
e já está cansado de repetir por três dias
As coisas não podem continuar assim
mas continuam
três dias
três noites
sem comer
e por detrás do vidro
patês garrafas conservas
peixes mortos protegidos pelas latas
latas protegidas pelo vidro
vidro protegido pelos tiras
tiras protegidos pelo medo
quantas barricadas pro seis sardinhas infelizes…
Mais adiante o bar e restaurante
café com leite e pãezinhos quentes
o homem titubeia
e lá dentro da sua cabeça
um nevoeiro de palavras
um nevoeiro de palavras
sardinhas para comer
ovo cozido café com leite
café pingado rum
café com leite
café com leite
café com crime pingado sangue!…
Um homem muito estimado no bairro
cortaram a garganta dele em pleno dia
o assassino o vagabundo lhe roubou
dois francos
ou seja um café pingado
zero franco setenta centavos
dois pãezinhos com manteiga
e vinte e cinco centavos de troco a gorjeta do garçom
É terrível
o barulhinho do ovo cozido quebrado contra o balcão de zinco
terrível esse barulho
quando se agita na memória do homem faminto.

O tempo sem fôlego

Encantada com tudo nunca se espantando com nada
uma mocinha cantava
de acordo com as estações seguindo o seu caminho

Quando as cebolas me farão rir
me farão chorar as cenouras
o burro da cartilha soube me ensinar a ler
a ler de verdade

Mas uma manivela desfez a primavera
e cubos de gelo atacaram o rosto dela

Tenho lágrimas demais para chorar
eles guerreiam contra a natureza
Eu que era íntima do sol
não ouso mais olhá-lo de frente.

Familiar

A mãe faz tricô
O filho vai à guerra
Tudo muito natural acha a mãe
E o pai que faz o pai?
Negocia
A mulher faz tricô
O filho luta na guerra
Ele negocia
Tudo muito natural acha o pai
E o filho e o filho
o quê que o filho acha?
Nada absolutamente nada acha o filho
O filho sua mãe tricô seu pai negocia ele luta na guerra
Quando tiver terminado a guerra
Negociará com o pai
A guerra continua a mãe continua ela tricota
O pai continua ele negocia
O filho foi morto ele não continua mais
O pai e a mãe vão ao cemitério
Tudo muito natural acham o pai e a mãe
A vida continua a vida com o tricô a guerra os negócios
Os negócios a guerra o tricô a guerra
Os negócios os negócios e os negócios
A vida com o cemitério.

Discurso sobre a paz

Já no final de um discurso extremamente importante
o grande homem de Estado engasgando
com uma bela frase oca
escorrega
e desemparado com a boca escancarada
sem fôlego
mostra os dentes
e a cárie dentária dos seus pacíficos raciocínios
deixa exposto o nervo da guerra:
a delicada questão do dinheiro.

Quando…

Quando o leãozinho almoça
.      a leoa rejuvenesce
Quando o fogo exige a sua parte
.      a terra enrubesce
Quando a morte lhe fala do amor
.      a vida estremece
Quando a vida lhe fala da morte
.      o amor sorri.

Para pintar o retrato de um pássaro

Primeiro pintar uma gaiola
com a porta aberta
pintar depois
algo de lindo
algo de simples
algo de belo
algo de útil
para o pássaro
depois dependurar a tela numa árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem nada dizer
sem se mexer…
Às vezes o pássaro chega logo
mas pode ser também que levem muitos anos
para se decidir
Não perder a esperança
esperar
esperar se preciso durante anos
a pressa ou a lentidão da chegada do pássaro
nada tendo a ver
com o sucesso do quadro
Quando o pássaro chegar
se chegar
guardar o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando já estiver lá dentro
fechar lentamente a porta com o pincel
depois
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar numa única pena do pássaro
Fazer depois o desenho da árvore
escolhendo o mais belo galho
para o pássaro
pintar também a folhagem verde e a frescura do vento
a poeira do sol
e o barulho dos insetos pelo capim no calor do verão
e depois esperar que o pássaro queira cantar
Se o pássaro não cantar
mau sinal
sinal de que o quadro é ruim
mas se cantar bom sinal
sinal de que se pode assiná-lo
Então você arranca delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreve o seu nome num canto do quadro.

O grande homem

No ateliê do talhador de pedra
onde o encontrei
lhe tiravam medidas
para a posteridade.

A felicidade de uns

Peixes amigos amados
Amantes dos que foram pescados em tamanha quantidade
Vocês assistiram a esta calamidade
A esta coisa horrível
A esta coisa terrível
A este tremor de terra
A pesca milagrosa
Peixes amigos amados
Amantes dos que foram pescados em tamanha quantidade
Dos que foram pescados cozidos comidos
Peixes… peixes… peixes…
Como vocês devem ter rido
No dia da crucificação.

Na loja de flores

Um homem entra na loja de flores
e escolhe flores
a florista embrulha as flores
o homem enfia a mão no bolso
para pegar o dinheiro
dinheiro para pagar as flores
mas de repente e ao mesmo tempo
ele põe
a mão no coração
e cai

Enquanto cai
o dinheiro roda por terra
e depois as flores caem
ao mesmo tempo que o homem
ao mesmo tempo que o dinheiro
e a florista fica ali
vendo o dinheiro que roda
as flores que murcham
o homem que morre
tudo isso é muito triste é claro
e é preciso que ela faça alguma coisa
a florista
não sabe o que fazer
não sabe
por onde começar

Há tantas coisas por fazer
pelo homem que morre
pelas flores que murcham
e com o dinheiro
esse dinheiro que roda
que não pára de rodar.

*Poemas do livro “Jacques Prévert – Poemas”, Editora Nova Fronteira S.A, 1985.
Tradução de Silviano Santiago