Roseana Murray nasceu no Rio de Janeiro, a 27 de dezembro de 1950. Poeta e escritora, publicou mais de 100 livros, entre poemas e obras infanto-juvenis.  Formou-se em Literatura Francesa pela Aliança Francesa, Universidade de Nancy. Recebeu por quatro vezes o Prêmio de Melhor Poesia da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, o Troféu APCA e o Prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor livro infantil. Faz parte da Lista de Honra do Conselho Internacional sobre Literatura para Jovens (o International Board on Books for Young People – I.B.B.Y.).  Em 5 de abril de 2024, em uma tragédia que chocou o país, Roseana sofreu um ataque de três cães da raça pitbull, em Saquarema, Região dos Lagos do Rio de Janeiro, onde mora. A poeta ficou internada por 13 dias, e acabou perdendo o braço direito e a orelha direita, além de feridas por todo o abdômen e rosto.


Lágrima

Ânforas esquecidas ao relento,
ao longo do tempo,
e as histórias acumuladas
em suas bordas, transbordam
quando uma lágrima, em algum lugar
do mundo, fala mais que todos os alfabetos.

Oceano

Da minha janela vejo o mar:
respiro sal e gaivotas.
Minha alma se desprende
e alcança a vela branca
quase invisível
na borda do horizonte,
como um grito
na beira de um precipício.

Palco

Acendam as luzes,
arrumem o palco
para a vida:
o sol já se desmancha
e a trança dos dias,
cada vez mais espessa,
se alimenta de tempo.
Há que dançar
até o último minuto,
até gastar os sapatos
e fazer os mesmos gestos,
mesuras, que ontem.
Há que sorrir na frente
do espelho e chorar
e rodar junto com a Terra.
Apaguem as luzes,
desarrumem o palco:
as cordas já não sustentam
o cenário.

Partida

Penso nos primeiros homens
fazendo fogo com as mãos,
a última comida antes de partir,
a longa viagem por todos os continentes
e quantos milênios já se passaram,
penso nos antigos navegantes,
o fogo das estrelas como guia,
e quantos séculos já se passaram,
penso nas grandes cidades, as noites
brilham, são incêndio, os homens correm,
fogem,
aonde chegamos?

Enigma

Para saber quem sou
pergunto meu nome
ao silêncio:
Que ressoem suas vogais
e consoantes
como constelações no universo,
que libertem a música oculta
dentro das pedras.

Meu nome seria a chave
de um enigma perdido?

Herança

Antes de nascer
herdei um barco
de nome incompreensível.
Em dias de tempestade
ele atravanca meu corpo,
embaralha meus passos,
dos seus porões
escapam ratos e segredos.
Tenho que levá-lo
gentilmente
até um porto de águas calmas,
secar o convés
com panos limpos
e dizer ao menino
que corre em círculos,
horrorizado e perdido

Corda roída

Flutua o horizonte
sobre o tempo
e as ilusões partidas.
O olhar apascenta nuvens,
montanhas e distâncias
e uma corda roída
tenta amarrar lembranças.

*Poemas do livro “Poemas para ler na escola”, Editora Objetiva, 2011.