Ricardo José Aleixo de Brito, nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, a 14 de setembro 1960. Poeta, músico, artista multimídia, performer, produtor cultural, sua lírica é influenciada pela poesia concreta, experimental, usando o máximo das funções da palavra em suas dimensões de conteúdo, sonoridade e visualidade.

Autodidata, Ricardo Aleixo estreou na literatura em 1992, com o livro “Festim”. Seus poemas revelam forte afinidade com o movimento concretista e com a etnopoesia. Com visão crítica da realidade, faz poesia social, mordaz, seca e irônica. Junta-se a isso seu trabalho de agitador cultural que leva a poesia à integração com outras formas de arte como o teatro, a música e a dança. Em Belo Horizonte é curador do Festival de Arte Negra (FAN), coordenador de projetos culturais (30 Anos da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, Tricentenário de Zumbi e a Bienal Internacional de Poesia).

Teatro

tudo branco
ao redor

estático
teatro de

sombras
matéria de

que é
feita a

insônia
quem me

dera o ouro
de uma

noite sem
memória

Estação Primeira de Manhattan

Curto-circuito agonia
granindo na boca do dia
Jimi Hendrix diz
triste:
“Eu queria ser hélio
o gás mais leve que existe”

Num segundo
tudo voa
a névoa púrpura
o nada que soa

Corpo elétrico alegria
à solta lambendo a cria
Hélio Oiticica diz
no pé
de Mangueia a Manhattan:
“eis o meu parangolé”

Num segundo
o mundo gira
verde-rosa
é a razão que delira

Gaia ciência
é isso:
um pensamento
que dança
feliz

no meio do povo
seu samba
metaesquema novo

Enquanto lido

quer coisa mais estranha
que um poema

enquanto nasce? enquanto
se conhece

desprovido de sentido?
enquanto pura pele

muito lisa e sem
memória? enquanto

ao mesmo tempo
excesso e falta?

enquanto víscera
à mostra?

enquanto ar
ritmia?

enquanto riso
besta? enquanto

rua de mão dupla?
enquanto

beco sem saída?
enquanto rosto

informe?
enquanto afasia?

enquanto líquidos
no ventre?

enquanto visão
de vultos? enquanto

respiração
difícil? enquanto plena

hesitação?
enquanto impulso de

desistência? enquanto
vermelho sangue

aos jorros? enquanto placenta?
enquanto rigor

mortis? enquanto dia
claro?

enquanto noite adentro?
enquanto sem

futuro?
quer coisa

mais estranha
que um

poema enquanto
lido?

Confidência

Prefiro a paciente
proeza das traças,
meu rapaz,
aos versinhos
bem traçados
dos quais
te mostra capaz
(assépticos e sérios
como os de
ninguém mais).
Ah! Ler-te é
penetrar na paz
dos cemitérios.
Ainda respiras, mas
já se entreleem,
junto aos títulos
dos teus livros,
os dois precisos
vocábulos
(“Aqui jaz”)
com que, um dia,
te saudarão os vivos.

Sobre escrever

Escrever porque esta é,
sem sombra de dúvida,
a melhor hora
para escrever.

Não escrever porque esta,
verdade seja dita,
é a melhor época
para não escrever.

Escrever porque esta,
convenhamos,
não é a melhor ocasião
para escrever.

Não escrever porque este,
antes e acima de tudo,
é o melhor turno
para não escrever.

Escrever porque este,
só um cedo não vê,
é o melhor tempo
para escrever.

Não escrever porque este,
apesar dos pesares,
é o melhor mês
para não escrever.

Escrever porque esta,
até segunda ordem,
não é a melhor noite
para escrever.

Não escrever porque este,
em última instância,
não é o melhor século
para não escrever.

Outro, outra pessoa

Era visível que ela me tomava por outra
pessoa. Pediu: venha um pouco mais para

a luz. Aqui está bem?, perguntei. Aqui é
minha ilha, respondeu. Calei um sim,

parado sob o círculo de luz para onde ela
pedira que eu viesse. Já me sentia outro,

outra pessoa, embora ainda não soubesse
exatamente quem, que outra pessoa.

Mamãe grande

todas
as águas do mundo são
Dela. fluem
refluem nos ritmos
Dela. tudo que vem.
que revém. todas
as águas
do mundo são
Dela.
fluem refluem
nos ritmos Dela.
tudo que
vem. que revém.
todas as águas
do mundo
são Dela. fluem
refluem
nos ritmos Dela. tudo
que vem.,
que revém.

*Poemas do livro “pesado demais para a ventania”, editora Todavia, 2018.