Gilberto de Mello Freyre nasceu em Recife, Pernambuco, a 15 de março de 1900. Um dos mais importantes sociólogos brasileiros do Século XX, também foi escritor, poeta, político, jornalista e pintor. Seu principal livro, “Casa-grande & senzala”, de 1933, é considerado uma das principais obras da literatura brasileira, onde rechaça as doutrinas racistas de branqueamento do país.

Gilberto Freyre foi um dos intelectuais mais premiados da história do país; laureado com o Prêmio Aspen, honraria que consagra “indivíduos notáveis por contribuições excepcionalmente valiosas para a cultura humana”, e com o prêmio italiano La Madonnina. Dentre outros prêmios e honrarias, recebeu a Ordem do Império Britânico, o Prêmio Jabuti de Literatura, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio de Excelência Literária da Academia Paulistana de Letras, medalhas de Portugal e da Espanha e a Ordem Nacional da Legião de Honra da França. Sagrou-se ainda imortal da Academia Pernambucana de Letras.

Gilberto Freyre faleceu no dia 18 de julho de 1987, aos 87 anos, no Recife.


SILÊNCIO EM APIPUCOS

As mangueiras
o telhado velho
o pátio branco
as sombras da tarde cansada
até o fantasma da judia rica
tudo está à espera do romance começado

um dia sobre os tijolos soltos
a cadeira de balanço será o principal ruído
as mangueiras
o telhado
o pátio
as sombras
o fantasma da moça
tudo ouvirá em silêncio o ruído pequeno.

ATELIER

Perdi o gosto de partir
quero ficar
viajar entre os quatro cantos
onde brinquei menino
mangueiras e jaqueiras
e não entre a Europa e a América
a África e a Oceania.

MENINO DE LUTO

Foi quase um Brasil sem menino
o dos nossos avós e bisavós,
Aos oito anos o menino
dizia de cor os nomes
das capitais da Europa.
dos três inimigos da alma
somava, multiplicava,
diminuía, dividia.
Estudava Gramática
Latina, Retórica
e Francês. Só saía
de colarinho alto,
sobrecasaca escura,
chapéu duro, gravata
preta e em passo de enterro.
Só saía de luto
da própria meninice.

HISTÓRIA SOCIAL:
MERCADO DE ESCRAVOS

Entre negros esverdeados
pelas doenças, se exibiam
os corpos de bela plástica
dos animais cujos dentes
de tão alvos pareciam
de dentadura postiça.
Negras lustrosas e moças,
um femeaço de boas
formas, lotes de molecas
passivamente deixando
se apalpar por compradores,
ante as exigências, moles,
saltando, mostrando a língua,
estendendo o pulso como
bonecos desses que guincham.
Havia ainda os moleques
franzinos. Nada valiam
porque se davam de quebra
aos compradores de “lotes”.

ENFERMEIRA

Como se a natureza humana fosse
barro nas suas mãos, mãos criadoras
ou recriadoras de escultora
não só de corpos deformados pelo
furor das doenças como almas deformadas
pelos excessos da saúde;

Sua presença de enfermeira junto
a um enfermo permite-lhe tornar-se,
mais do que médico, do que padre ou do
que um rabino ou do que um pastor
evangélico, às vezes mais do que
esposa, filha, mãe, inspiração
para a nova alma que a enfermidade
longa e grave dá sempre ao seu enfermo.

AUSÊNCIA

Que saudade é esta minha
que não me deixa escrever
que faz meus olhos não lerem
meus ouvidos me traírem?
é a saudade pior
a das ausências pequenas
chuva miúda por dentro
mesmo quando tudo é sol.

ROMA

Roma
as catacumbas
o cemitério Protestante
o Vaticano
o Papa falando português
e dizendo corazón em vez de coração.

OS BICHOS E O AVIÃO

África oriental. O pequeno avião
em voo baixo sobre animais bravios,
em voo tão baixo que as feras mais afoitas
chegam a investir contra o avião intruso.
Como o dia é de sol depois de várias semanas de chuva
os bichos afluem aos descampados
volutuosamente para se aquecerem.
Os hipopótamos são os que primeiro se oferecem à nossa vista,
os búfalos deixam admirar-se quase como num circo.
Os elefantes, famílias inteiras de elefantes a correrem não em desordem,
mas hierarquicamente, fidalgamente pelo descampado
é que não se conformam com a intrusão: reagem.
Alguns reagem contra o avião com uma violência verdadeiramente selvagem,
embora, todo o tempo, fidalga.

Vejo-os chegar tão perto do frágil aviãozinho
que tenho medo de suas trombas de gigantes enfurecidos.
O marfim de suas presas brilha ao sol.
Todos eles parecem brilhar ao sol
pois todos estão um pouco úmidos das últimas chuvas.

*Poemas do livro “Talvez Poesia”, Global Editora, 2010.