Bruna Mitrano nasceu em 1985 no Rio de Janeiro. Filha de camelô e neta de lavadeira, é mestre em Literatura pela UERJ, professora, escritora, desenhista e articuladora cultural. Publicou poemas, contos e desenhos em jornais, revistas e antologias no Brasil e no exterior. É autora do livro “Não” (Ed. Patuá, 2016).
ela pediu pra eu não enlouquecer
parei de tomar os remédios pra tentar ser gente
mas uma chuva forte caiu
era janeiro
e me escorreguei
perdi o senso
disseram
é temporário
os tremores noturnos
a matriz de uma ânsia descabida
os rostos na janela
todas as noites
os rostos que catequizam as janelas
nas casas sem muro
não há o que se ver que não sobrecarregue a carne
o corpo ainda sente
curva-se ao inevitável
tomba no meio da rua e conclui
não se dá as costas pra morte
há sempre um diagnóstico
preto no branco
vou morrer de tempo ou
vou fazer o quê?
re:___________________.
– Bruna Mitrano –
*Do livro Não (Patuá, 2016)
ENTREVISTA
01 – O que significa ser Poeta na atualidade?
– Significa ser inútil do ponto de vista capitalista.
02 – Qual é a sua visão sobre a produção poética contemporânea?
– A multiplicidade é a marca da produção poética da nossa época. Mas vale lembrar que produção não é sinônimo de publicação ou distribuição. O mercado editorial deixa a desejar em termos de diversidade porque adota os mesmos critérios de seleção de uma sociedade misógina, racista, LGBTQIA+fóbica etc.
03 – Qual é a função social da poesia e do/a poeta na atualidade? Ele/a precisa ser atuante e se posicionar?
– Toda palavra é transformadora. O papel da/o poeta é criar mundos possíveis. Para qualquer humano, o posicionamento é inevitável. Se você acha que não se posiciona, está, de algum modo, se posicionando. Agora, vale considerar a diferença entre posicionamento e atuação. A meu ver, a teoria sem a prática, sem a ação, perde o sentido.
04 – Inspiração ou transpiração: o que é mais importante na sua produção poética?
– A minha poesia é transpiração. Escrevo no ônibus, no trem, na fila do mercado. Escrevo inclusive quando não escrevo, na correria dos dias. Nenhuma musa me acompanha.
05 – Quais são suas principais referências poéticas? Como elas acrescentaram na sua escrita?
– Stella do Patrocínio, Ana C., Wislawa Szymborska, Ana Martins Marques e muitas outras e outros me ensinaram e ensinam, porque o processo é constante, que a poesia é um gesto de liberdade.
06 – Versos livres ou métricos? Linguagem coloquial ou erudita? Você diferencia poesia de poema? Como? Ainda há espaço para poemas líricos, clássicos e ditos “fixos”?
– Acreditar que formas historicamente privilegiadas hoje sofrem com a exclusão e o estigma é muito esforço para se afogar em baldinho de plástico. Um falso problema, eu diria.
07 – Por que você escreve?
– Fizeram essa pergunta à Clarice Lispector e a resposta viralizou: “e eu sei?”.
08 – Estamos historicamente em uma geração que busca “revisar” os acontecimentos do mundo e trazer à tona as versões oprimidas. Com isso, muitas obras clássicas passaram a ser criticadas, assim como seus autores. É possível separar os tempos e não associar esse passado à atualidade?
– É impossível não viver o hoje. Como diz Wislawa Szymborska: “Somos filhos da época/ e a época é política.” Negros e negras, mulheres, LGBTQIA+ foram e são perseguidos e punidos por nada. Responsabilizar autores (vivos e mortos) por posicionamentos racistas, misóginos, LGBTQIA+fóbicos não é punição. Neste exato momento, quer dizer, no exato instante em que digito esta resposta, faz 44 graus em Bangu, bairro mais quente da cidade do Rio de Janeiro e que abriga um famoso complexo penitenciário, cuja superlotação chegou a 200%. Pessoas encarceradas: isso, sim, é resultado de uma sociedade punitivista. Revisar clássicos é outra coisa, é um processo de conscientização.
09 – Como você vê a efervescência da poesia e o aparecimento de inúmeros poetas nas redes sociais? Esse aumento traz benefícios? Ajuda ou atrapalha? Aproxima a poesia das pessoas ou banaliza a qualidade de produção?
– Não acredito no critério qualidade. A internet favorece a publicação da chamada “margem”. É um movimento de inclusão, embora lento e tardio. Ainda há os excluídos digitais. Mulheres rascunhando versos nos cantos de livros de receitas herdados de suas tataravós, benzedeiras entoando a mais pura poesia sagrada em comunidades rurais,
pichadores escalando prédios do centro de São Paulo…
10 – Como poeta, de que maneira você acha que será lembrado/a um dia?
– Não tenho a ilusão de ser lembrada. A morte só interessa aos vivos.
*Entrevista retirada do livro “Na Poesia Viva: A Poesia Contemporânea Em Frente e Verso”, de Igor Calazans, publicado pela Editora Viés, em 2020.