Como a Água que Bebo

Aprendi a me virar
revirando o que se vira.
Perco o céu mirando abaixo,
topo o chão vendo pra cima.
Sei que há olhar soslaio
quando viro e não me mexo,
tombo torto e quase caio
pelos lados do avesso.
Mas, enfim, um ser contrário
também pode se encaixar?
Quem sabe um dia,
como água,
ganho a forma do lugar.

Epílogo

Poeta de mão cheia
e bolso sempre vazio…
Adulado por mil tapinhas nas costas,
açodado por aplausos e elogios.
Mas, na alcova,
em cima da cama,
descansa enterrado vivo
sobre os fósseis amontoados
das capas de seus próprios livros.

Prole da Vida

Haverá um tempo que passaremos a ser expectadores de nós mesmos
E aspiraremos à essência do que fomos noutro dia.
A presença traz momentos sem desvelo
Pela ordem cedo ou tarde concebida.

E a alma, instransponível e vigorosa,
Atinge o ápice da ventura e impavidez,
Quando a tez deixa marcas rancorosas
Das inóspitas carniças dos reféns.

Que sangraram, pisadas pelas guerras,
E rasgaram juntos aos ossos fraturados,
As angústias de não ter sobrevivido

Tornando o prélio sua imagem e semelhança,
E, em cada prole, mulheres e crianças,
Que a terra cobre entre mortos e feridos.

Seis Dias

Por tão pouco você não me acertou em cheio,
À distância de seis dias, mais preciso…
Desde quando sinto os lábios do seu beijo
E a saudade da semana sem sorriso.

Talvez, a falta trouxe fome,
Tua presença marcou a minha vida,
Mas depressa, esqueço-me do nome
E da dor que me faz tua comida.

Os teu braços, envoltos à minha cura,
De ver tão longe tudo que mais sinto,
Fez seis dias serem a distância
Exata e intangível do faminto.

Tenho fome,
Tenho carne,
E não te tenho…
Tenho voz desencarnada pela ausência.

A memória, de famélica alegria,
Não me lembra, não me leva,
Sequer pensa,
O espaço deixado por seis dias.

E depois, recebi notícias tuas,
Dizendo tudo aquilo que previa…
Não senti sozinho a carência,
Senti, sozinho, a companhia.

Nascente

Sempre há algo novo
Nascendo
De novo.
Assim como a natureza
Da verdade.
Nunca, jamais,
Em tempo algum,
O passado será sinônimo de tarde.

O que passou, jaz presente,
Num dia voltará ultrapassado
Ao instante do que acontecera
Na memória do momento imaginado.

E as horas entorpecem o segundo,
Diluindo a pressa do porvir,
Em que antes mesmo da lembrança
A herança do tempo faz ruir.

Sê agora! Diante a sua espera,
Pela outrora, silente e moderada,
Faz da vida um encontro de quimeras
E da morte um desejo de mais nada.

Entorno do Tempo

Tudo já foi dito,
inclusive, as formas de dizer.
Tudo que existe já foi pensando,
daquilo que fosse impossível
ao fato tido mais raro.

Tudo é uma mesmíssima coisa

que roda no entorno do tempo,
que rola no todo da lógica,
e que faz de nós,
uns aos outros,
centelhas que chispam
em móveis inertes,
sorvendo absurdos,
brincando de neve
com flocos de isopor
num calor de 40 e poucos graus
à sombra viscosa da pele.

Tudo que já sentimos,
já sentiu alguém.

Nossa única missão
é fazer de um jeito diferente
dos outros que nada fizeram
mas um dia pensaram também.

Réplica das Reticências

Algo me diz que ainda vou mudar o mundo,
Mas, primeiro, uma xícara de café.
Depois acordo mais forte e seguro,
Com mais vontade e aparência.
Deixe nos versos uma extensão
À flor da pele,
Da minha cara e coragem,
De carne e osso,
Do corpo nu e sem desvelo.
Entrego às palavras
A falência múltipla dos meus órgãos,
Para que me doem em versos
E espalhem em vidas
As sementes das minhas reticências…

Perdas

Eu não tenho medo do tempo,
eu tenho medo do tempo dos outros,
das pessoas que me acompanham.
Tenho medo dessas perdas
inevitáveis enquanto eu estiver vivo.

Nunca tive medo do escuro,
as sombras é que me assustavam…
Também não tinha medo do silêncio,
eram os uivos que me impressionavam.

Por isso, também não temerei a morte,
ela é o caminho.
Mas ficarei sempre muito temeroso
e despreparado aos tempos
daqueles que eu amo.

Previsível

Nada me é o bastante.
Tudo nessa vida
Me parece ontem.
Ou seja,
Sempre saberei,
Mas nunca alcançarei
O tempo exato
De ser preciso
Esperar.

Tentáculos

Mentiras criam tentáculos
que ressoam em aplausos.
A verdade se cala
por falta de provas.
O medo expõe coragens covardes,
o ódio conserva a raiva do fraco-oprimido.
Tudo volta a ser
no ciclo do poder…
Todo poder é vicioso,
perigoso e paliado,
por isso máscaras caem
pela própria natureza.
Mais uma era perdida…
Quem sabe um dia
a pena seja um sentimento nobre
e não um castigo da consciência.

*Poemas do livro “Como a Água que Bebo”, Editora Viés, 2019.

Sobre o Autor

Igor Calazans Abreu nasceu em Niterói, Rio de Janeiro. Poeta, Jornalista e Produtor Cultural, possui 5 livros publicados, até o momento. “Como Água que Bebo” foi o seu terceiro volume, que trouxe uma compilação de poemas desenvolvidos durante a sua trajetória, com outros inéditos naquele momento, mostrando importantes fatores de sua transição poética, conteúdo e estética. Poemas como “Epílogo” e “Réplica das Reticências”, ganharam destaques na mídia e comumente aparecem em revistas e sites literários.