Por Luiz Otávio Oliani

 

 

“há sempre algo nítido
para não compreender”
Igor Calazans

Uma poesia que ausculta o tempo do ser, o tempo do sentir e a reflexão. Assim é a literatura de Igor Calazans, em “Azo Vácuo”, quinto livro de poemas do autor, em publicação pela Opera Editorial, SP, 2022. Quanto à genealogia do título, convém dizer que azo é propósito, causa, ou o que provoca algo. Vácuo é o vazio, a lacuna, ou o que é desprovido de.

Assim, a obra traduz, portanto, a busca pela essência do homem naquilo que lhe falta, mas tem uma razão de ser. É a necessidade de entender sobre a incompletude, pois, através dela, nasce o anseio de questionar o mundo nas questões mais recônditas a acompanhar os seres.

E, para já mergulhar nas reflexões provocadas pelo volume, vale a pena trazer à tona as palavras de Marcelo Mourão, poeta, crítico literário, mestre e doutorando em Literatura Brasileira, que assinou o prefácio da obra, na página 16:
“Azo Vácuo” é um livro para ser lido e degustado devagar, poema a poema, buscando-se o tempo todo refletir ao mesmo tempo em quer se lê. É poesia filosófica ou filosofia poética? Devem ser, na certa, as duas coisas numa obra só.”

Feitas estas notas acerca do título, é fundamental avançar sobre o conhecimento do trabalho em voga. Três características percorrem a literatura de Igor Calazans.

A primeira característica refere-se à estrutura dos textos, ora escritos com maiúsculas em cada verso inicial de cada poema, ora em outra parte significativa, nos quais letras minúsculas se alteram com as maiúsculas. Tanto que “Pedra Filosofal”, p.33, é um poema todo marcado com palavras em maiúsculas e apenas duas palavras em minúsculas, todavia entre parênteses. Neste caso, ao tratar sobre os recursos literários usados pelo autor, convém citar que o texto lembra o poema simbolista “Violões que choram”, de Cruz e Sousa.

A estrofe mais significativa do poema simbolista é: “Vozes veladas, veludosas vozes / Volúpias dos violões, vozes veladas, /Vagam nos velhos vórtices velozes / Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas” exalta o máximo do trabalho lexical. Isto porque Cruz e Sousa valorizou o fonema fricativo labiodental /v/; já Igor Calazans se valeu da consoante vibrante alveolar /r/ porque “Reunindo Ruídos, / Ruminam Ruínas Roídas,/ (…), / Raras.” Isto revela, por si só, que Igor não se prende a regras, faz uma poesia totalmente livre, e ele sabe o que faz, do ponto de vista da estrutura dos poemas.

Há versos livres, mas há textos com estrutura do soneto e presença de rimas, sobretudo as toantes.
Importante citar também a presença da prosa poética ou do poema em prosa. Um dos mais belos textos do livro é “Papel de Deus”’, p. 51, em que o eu lírico aparece sob proteção divina; o que confirma a criativa abordagem, seja de formas, seja de temas. Ao final, o encontro dos personagens se dá de forma monumental: “Sorrimos simultaneamente, / ele com seu rosto indizível / e eu com a sua semelhança inextricável. / Disse-me antes de evanescer: // — Me escreva, / E nos criamos.” Também há um espaço para uma poesia que se faz mais narrativa, com o intuito de contar uma história, como é o caso do texto “História Adiante”, que ocupa as páginas 60, 61 e 62.

A segunda característica autoral está entremeada à primeira, porque se reveste de atributos necessários à poesia, quais sejam o trato estético dado ao idioma, o uso de figuras de linguagem e a presença de jogos sonoros.
Um texto que justifica as teses apresentadas é “Implosão”, p. 28, rico de prosopopeias, sinestesias, além de rimas variadas, pois “A voz era dos olhos / que se entregavam / enquanto o pulsar ouvia os sentidos / do toque entre os dedos tortuosos”, já que “Arranharam as veias da garganta, / dilatou-se a visão que por cerne e carne / o corpo implodido / à letal sobrevivência / deixa de ser instinto / que não foge à razão.”

Já em “Fendas”, p. 132, o eu lírico revela: “Minha boca salga / enquanto o coração engole / impulsos do céu” e estes versos bastam para mostrar os jogos de palavras através da função de partes do corpo, tais como a “boca” e o “coração”. Isto porque, ao deslocar os vocábulos do real sentido que possuem na denotação, literariamente as referidas partes corpóreas assumem uma dimensão metafórica que vai além, tudo para mostrar a fragmentação do ser, ora marcado pelos dois versos finais do texto, a saber: “Uma lacuna seria aberta / com as mordidas da cavidade.”
Interessante registrar que alguns títulos de poemas já trazem a metaforização em si, ou a linguagem esteticamente trabalhada como pede a Poesia com “p” maiúsculo, a saber: “Sinônimo de Silêncio”’ (p. 23); “No Dia que o Sol Atinar” (p.59); “Dorso do Sol” (p.134); “Miolos da Tarde” (p.136); “O Dia Nasceu em Meu Corpo” (p.147), o que não exclui outros textos.

A metalinguagem aparece no texto “Quem diria…”, p. 103, no qual o gosto pela criação artística se faz através de um campo semântico inerente ao tema pelos vocábulos ou expressões: “palavra”, “desdizer” e “dito pelo não dito”.
“Motivo”, p. 121, é um texto que dialoga intertextualmente com um clássico poema de Cecilia Meireles, com o mesmo nome. Tanto ela quanto Igor Calazans têm olhares que parecem antagônicos, mas, que, no fundo, correspondem a visões particulares acerca de um mesmo tema. Se, para Cecilia, ser poeta representa certo equilíbrio e o canto é o que lhe faz bem, em virtude da consciência da finitude; para Igor Calazans, é crucial fazer as coisas terem sentido (…) / para continuar sempre vivo / nos motivos das pessoas.”

Quanto à característica de número três, e não menos importante, trata-se de tema já exposto aqui, quando da abordagem do título. Consiste na exposição objetiva de abordagem temática lírico-existencial que perpassa a obra em voga através de divagações filosóficas de alto impacto.

O poema da página 19, que dá título ao livro é “Azo Vácuo” é de alto impacto e merece referência pela imagética das aliterações, por meio de sons sibilantes, quais sejam: “silêncio”, “silente”, “sibilo”, “simbólico”, “sumiu” e “sentido”. Todavia, na abordagem da concepção do nada, surgem as elucubrações nas quais tal filosofia se apoia, pois se houvesse definições categóricas (e estas não existem) “o nada // (…) / calaria a voz / enquanto muda o seu sentido, / no hiato indizível / onde nascem as palavras.”.

As letras maiúsculas aparecem nos versos iniciais de “Diante as Evidências”, p. 25. Outro traço interessante é a contraposição de que se alimenta o eu lírico com o “ímpeto da sombra”, “galhos secos”, “folhas amareladas” versus o “raio solar” e o “Emancipar o dia”, em alusão indireta à escuridão e à luz a que aludem o Mito da Caverna, de Platão.

Em “Não foi à Toa”, p.58, o tema da dúvida existencial atravessa o texto que é dividido em dois instantes. As três estrofes iniciais voltam-se ao antes, e as duas seguintes ao “Hoje”, devido à presença do advérbio de tempo. Se o eu lírico se referiu a uma pessoa com o desejo de não ofuscá-la, mas lhe dar proteção, no evitar os elogios vazios; ao final, chegou à verdade deste ser a quem se volta, com a certeza de questionamentos subjetivos.

E, ao ampliar o leque temático, Igor Calazans não ignorou a crítica social e o homem imerso no meio ambiente totalmente devastado. Merecem destaque dois poemas, a saber: “Desaparecidos”, p.69, no qual o eu lírico evoca o drama de pessoas que morrem afogadas, que somem em minas, são mutiladas, entre outros dramas, sem deixam vestígios. Assim, “Para onde vão as almas / De quem morre / Sem enterro? // Somos quem morremos?”.
O outro texto evoca a irracionalidade do homem, ao agir por um bel-prazer injustificado. É o que provoca a leitura de “Causa natural”, p. 68: “Se eu fosse um peixe / Morreria afogado / Se fosse formiga / Morreria soterrado / Se fosse um pássaro, no ar / Morreria asfixiado. / Mas, como sou humano, / Eu mato.”

E, para finalizar, “Saber amar”, p. 108, é um poema que alcança o sentimento mais nobre do mundo, pois o eu lírico profetiza: “’Amar é saber que a vida acaba / (…) // Amar seria a própria morte / E da morte que talvez ninguém morresse”.

Justamente pela consciência da efemeridade do tempo, é que Igor Calazans escreve literatura, tudo para suscitar as dúvidas que sempre acompanharão o homem na jornada que é a vida.

RESENHA: DICOTOMIAS EXISTENCIAIS EM “AZO VÁCUO”, DE IGOR CALAZANS

de LUIZ OTÁVIO OLIANI, professor e escritor. Publicou 18 livros, incluindo poesia, conto, teatro e literatura infantil.