Fabio Pusterla nasceu em Mendrisio, Suíça, em 1957. Tradutor, poeta e escritor, estudou na Universidade de Pavia, onde se formou em Literatura Moderna. De 1988 a 1998, foi editor da revista Idra. Traduziu para o italiano obras de poetas franceses como Philippe Jaccottet, Antoine Emaz e Corinna Bille. Recebeu o Prêmio Schiller Suíço em 1986, 2000 e 2010 e ganhou o Prêmio Gottfried Keller em 2007. Em 2008, colaborou com a artista Samoa Rèmy no livro de artista Sulle rive, tra le foglie, sui rami. É professor de literatura moderna e poesia na Università della Svizzera italiana em Lugano e na Universidade de Genebra.
OS GESTOS DO TRABALHO
Às vezes, dos gestos opacos do trabalho
escapa o tema de uma dança.
As mãos então acariciam o ar
os braços se tornam galhos de uma macieira
abertos para a luz, e saúdam algo.
E os outros aqui estão, todos juntos:
todos no gesto, todos no movimento
de uma mão que cruza eras biológicas,
espreme uma areia longínqua,
uma chave de fenda, um martela, um gancho, uma lâmina de sílex,
a pele morna de um animal desaparecido,
um seixo quente de fogo,
um sexo vivo.
Então eis o grão, as sementes de cereais, o vento
que move os passos, e canta: sob os pés
as grandes planícies, as pedras brancas
de ruas brancas de ruas que conduzem ao mar,
festas de estação.
Sigo pois os gansos selvagens, os cardumes,
sei todos os cheiros do bosque, as rotas da água,
subo o dorso de grama das montanhas,
os vales do céu.
Porque às vezes dos gestos pobres do meu trabalho
escapa o tema de uma dança.
Então já não tenho peso, sou livre
no fundo do meu segredo cotidiano.
E se a luz se fizer mais distante,
eu guardo sua essência.
QUANTO DE NÓS E QUANTO AINDA
1
Por corredores inacessíveis
por semienterrados dos quais todos
querem ignorar a existência
quartos ou grutas sulcados por canais de escoamento
poças para o sangue
charcos
na dança a meia altura dos arpões
tiras de cartilagens
ganchos
onde as cores explodem e as artérias
cortadas se dissecam
vazias
no grito do corpo lacerado
no silêncio da carne e da mercadoria
na luz de uma lâmina
quanto de nós
e quanto ainda se enredou
na mão que empunha em seu braço
e no olho e no choro que não derrama
na fome esfomeada
quanto de nós
e quanto ainda do existir
permanece
o que se afirma aqui e o que se nega
o que se cala e o que não tem nome
quando o nome repugna e brilha
e nos ata à coisa revela
a culpa e a inércia
a voz que cala o olhar
que sabe mas não fala
o odor
2
Quanto de nós e
quanto logo sobrevive
aos corredores do nada aos secretos
quartos negados e fechados
àquela passagem
no amanhecer de caminhões e frigoríficos
botas
balas de ossos em pó
balas de gelatina
espumas e descargas
chaminés
quantos dentre nossos sonhos
qual beleza pode surgir
qual asa abrir-se no voo
qual voo e de quem
por qual céu de fumo
quanto se este for o preço
que ninguém declara e todos pagam
e quanto esforço
requer uma carícia
um sorriso
que cansaço o despertar
não falemos
de amor
3
Quanto de nós
e quanto ainda e qual gesto
é o meu que me compraz
em descer quase todo dia até aqui
se esta é minha viagem
usual e se surjo como Ulisses
culpado e inocente
sujo de luz e baixeza
rasgo e tenho gosto
pelo contraste mais injusto e chiam
comigo o ultraje e a doçura
o ritmo do respirar e sua ausência
violenta e programada
industrial
a festa e o sacrilégio
o cadáver e a mancha de cor
a voragem e o canto
se da arte se trata e qual
onde leva ou se embrida
este deslocar-se e a cãibra
esta ânsia por saber
o que ocorre lá embaixo
o esgar da flor
FRAGMENTO DE PAISAGEM
Borboletas de ferrugem, dados, ângulos retos
vida que aqui renuncia às próprias estrelas.
Cada dormente
cravado num destino de trilho,
paralelas eternas, imutáveis, seixos
ao redor que têm a tinta do ferro. Até o vento
tem o odor metálico, queima a pele.
Um pedaço de quartzo
arrancado ao próprio futuro de cristal
brilha no meio do nada,
lembra algo ou prenuncia,
ao seu modo rebelde.
*Poemas do livro “ARGÉMAN”, Edições Macondo, 2022
Tradução de Prisca Agustoni