Prisca Rita Agustoni de Almeida Pereira nasceu em Lugano, parte italiana na Suíça, a 20 de maio de 1975. Poeta, escritora, tradutora e professora de literaturas italiana e comparada na UFJF, vive no Brasil desde 2002, mais precisamente na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. É casada com o também poeta Edimilson de Almeida Pereira. Vencedora do Prêmio Oceanos de 2023, com o livro “O gosto amargo dos metais”, inspirado nas tragédias de Mariana e Brumadinho, atualmente integra o conselho editorial das Edições Macondo e, na Suíça, a curadoria do festival literário internacional Chiasso Letteraria. Também colabora com jornais e revistas literárias na Itália e no Brasil.


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Somos criaturas perfeitas
e sem maldade
quando retornadas
da extinção

como primatas
que erguem a coluna
e voltam a andar
reinventando um horizonte.

Não me julguem, por favor,
apenas sigam-me

nas salas escuras do museu

para conhecer minha família
congelada no eterno

O despertar dos extintos

E se agora, todos juntos, abrirmos os olhos:

se decidirmos voltar
implodindo as previsões,
os cálculos exatos sobre nosso término:

.                  emergir da terra,
sair de sedimentos oceânicos
ou recompor osso por osso
dente por dente
nossa frágil arquitetura;

se largarmos de vez os museus
e trouxermos
o que aprendemos do outro lado;

e se, aos poucos, nos organizarmos
direito para empurrar vocês,
todos vocês,
para a sala dos experimentos:

e lá extrair seus fígados
e estômagos, conservá-los em vidros
com formalina:

nas ampolas jogaríamos o cérebro
de algum espécime de home,
quando fosse
uma serpente totêmica:

após um apurado estudo
de acordo com o método
mais científico

chegaríamos às conclusões
mais sombrias
sobre a sorte do homo sapiens;

se resolvermos obrigá-los
à perene transumância
da floresta para a gaiola
ou à metamorfose
do ser cão em seu adorno;

se quisermos expulsá-los
do inferno e da curvatura do sonho

para condená-los
ao que resta
ao pouco que sobra:

alguma lembrança incerta
uma fosca visão do presente

e alguma rara fantasia de futuro:

qual legada inventariam,
sem olhos, sem filhos, sem sonhos,

sem palavras, sem sexo?

Revoada

Olha para esses pássaros
guiados pelas constelações:

na memória
as garças se misturam
com o voo das andorinhas que vi
numa tarde quente em Lisboa

na memória
atravessam as páginas abertas
do meu caderno, as garças
entram à direita
e saem, andorinhas, pela esquerda

como numa tradução
dissolvendo as fronteiras,
uma língua confundindo-se na outra

Bois antigos

Cruzo com um rebanho de bois.
Lindos, mansos, antigos.
Pretos e brancos.
Vão calados margeando o rio.
No entardecer, voltam para aquele lugar
que será o passado.

Avançam silenciosos na névoa.
Carregam consigo os mistérios.

O tubarão

No salão reservado aos aquários
não sei quem é refém de quem
na fúria do outro:

há um mundo
dentro do outro mundo

e capto, no breve lapso de seu rabo
passando de raspão pelo meu rosto,
o vidro como um teste de contato

seu olhar me devorando:

sou para ele um invasor
disperso,
um ser submerso
no grande aberto do seu reino

: um tremor de cílio no universo

Somos seres de metamorfose I

o pássaro paleolítico fugiu da pedra,
abandonou sua condição de ser
humana ideia de pássaro
arcaico
ou rastro de um mito em ruína
na pedra:

aprendeu a voar fora
do cativeiro
de nossa fabulação

aprendeu a ser qualquer coisa
de mutante e migrante

– antipássaro na antimatéria –

aprendeu a ser apenas ave
longe da linguagem

é disso que se trata:

inventar a fé nas corolas
– coroas do reino vegetal.

ser floresta
apesar da rigidez dos ossos

e verdejar o mundo
nem que seja na linguagem

O cemitério mais antigo do mundo

não é façanha humana:

encontraram
restos mortais
de hominídeos
de 200 mil anos
antes de Cristo

seus cérebros como bergamotas
já sabiam
a vida cíclica
o choro trêmulo
o rito fúnebre
o fedor cítrico

a distância entre a estrela
e a aranha:

criar símbolos
deixar rastros
enterrar seus mortos

não é privilégio do homo sapiens
e sim daquilo que pulsa

nômada
e imprevisto

*Poemas do livro “Quimera”, Círculo de Poemas, 2025.