Ocean Vuong nasceu em Ho Chi Minh, no Vietnã, a 14 de outubro de 1988. Poeta, ensaísta e romancista, é um dos mais reconhecidos escritores do seu país na atualidade, sendo nomeado um dos “32 escritores asiático-americanos essenciais” pela Buzzfeed Books, em 2022. Seus poemas e ensaios de Vuong foram publicados em vários periódicos, incluindo Poetry, The Nation, Boston Review, The New Yorker e o The New York Times. Em agosto de 2020, Vuong foi revelado como o sétimo escritor a contribuir para o Future Library project. O projeto, que compila obras originais de escritores todos os anos de 2014 a 2114, permanecerá sem leitura até que as 100 obras coletadas sejam eventualmente publicadas em 2114.

Um passo rumo ao precipício

Jovens a ponto de imaginar que nada irá
mudá-los, seguem de mãos dadas

à cratera da bomba. A noite cheia
de dentes pretos. O Rolex falso dele, que em

semanas vai se estilhaçar no rosto dela,
agora se esconde como uma lua sob os seus cabelos.

Nessa versão, a serpente é acéfala – só um manso
cordão enlaçando os tornozelos dos amantes.

Ao levantar a saia branca de algodão ele revela
mais uma hora. A mão dele. As mãos dele. As sílabas

que há nelas. Ó pai, Ó prenúncio, pôr pressão
dentro dela – como o campo estilhaça a si mesmo

com gritos de grilos. Me mostrem como a ruína
faz dos ossos do quadril uma casa. Ó mãe,

Ó mão diminuta, me ensina
a segurar um homem como a sede
segura a água. Que cada rio inveje
as nossas bocas. Que cada beijo caia sobre o corpo

como uma estação. Em que as maçãs trovejam
a terra com cascos vermelhos & eu sou teu filho.

Oração pelos recém-condenados

Amantíssimo Pai, perdoai-me, pois vi.
Além da cerca de madeira, um campo claro
de verão, um sujeito põe a faca
na garganta de outro homem. Aço virando luz
na goela lisa de suor. Perdoai-me
por não retorcer a minha língua até formar
o Vosso Nome. Por pensar:
assim deve começar toda
oração – o pedido Por favor rachando
o vento em fragmentos, no que ouve
um garotinho que precisa descobrir
como a dor abençoa de volta o corpo
ao pecador. Em um instante a hora
para. O sujeito, lábios premidos contra
a bota preta. Será que é um erro meu amar
aqueles olhos, ver algo tão brilhante
& azul? Será que o meu rosto tremeu
quando a sombra molhada jorrou da virilha
& gotejou na terra amarelada? Com que velocidade
a lâmina vira Você. Mas me deixa começar
de novo: há um menino ajoelhado
numa casa com todas as portas escancaradas
para o verão. Há uma pergunta que corrói
sua língua. Uma faca tocando
O seu dedo alojado na garganta.
Amantíssimo Pai, o que vai ser do menino
que não é mais menino? Por favor
o que será do pastor
se as ovelhas forem canibais?

Destruidor de lares

& nós dançávamos assim: vestidos brancos das mães
que transbordavam nossos pés, o fim de agosto

colorindo as nossas mãos de um rubro escuro. & nos amávamos assim:
com vodca & uma tarde no ático, os teus dedos

entre os meus cabelos – os meus cabelos em fogo. Cobríamos
o ouvido e o chilique do teu pai se transformava

em pulsações. Quando os nossos lábio se tocavam o dia se encerrava
num caixão. No museu do coração

há duas pessoas sem cabeça construindo uma casa em chamas.
A espingarda esteve sempre lá sobre a

lareira. Sempre uma outra hora para matar – só para implorar
a um deus que nos devolva. Se não o ático, o carro. Se não

o carro, o sonho. Se não o menino, as suas roupas. Se não vive,
desligue o telefone. Porque o ano é uma distância

que viajamos em círculos. O que quer dizer: nós dançávamos
assim: sozinhos em corpos que dormem. O que quer dizer:

nós nos amávamos assim: uma faca na língua se transformando
em uma língua

Autorretrato crivado de balas

Deixe; ao invés, que seja ele o eco de cada passada
afogada na chuva, que aleije o ar como um nome

jogado num barco que afunda, e respingue na casca da paina
após passar pelo podre & pelo ferro de uma cidade que se tenta esquecer

os ossários que há sob as calçadas, depois vá e atravesse
o campo de refugiados, enfermo de fumaça e hinos cantados

até a metade, um barracão enegrecido de ferrugem & onde queima
a última vela de Bá Ngoia, as faces dos sapos que temos nas mãos

& confundimos com irmãos, que entre num salão iluminado
pela neve, cuja única mobília é o som do riso, lá onde pão

& maionese são içados a lábios rachados como prova
de um triunfo de que ninguém se lembra mais, que limpe o rosto corado

do recém-nascido enquanto o pai pega nos braços, todo enrolado
em vísceras de peixe & Marlboros, todos torcendo enquanto

mais um moreninho é abatido pelo M-16 de John Wayne, o Vietnã
em chamas na tela, que passe por seus ouvidos,

límpidos, como uma promessa, antes de pregar o pôster
de Michael Jackson cintilante sobre o sofá, no

supermercado onde uma mulher miscigenada se
dispõe a acreditar que cada branco com nariz igual ao dela

é seu pai, que cante, brevemente, em sua boca,
e só depois a deite entre latinhas de tomate

& o macarrão, enquanto rola da sua mão
a vermelhíssima maçã, depois na cela onde o marido

fica olhando para a lua, ali sentando,
até se convencer de que deus não vai mais

recusar nenhuma hóstia, que acerte o queixo dele como um beijo
que esquecemos como dar um no outro, voando

de volta a 1968, na Baia de Ha Long: o céu
substituído pelo fogo, o céu para onde só olham os mortos,

que alcance o avô que agora trepa com
a camponesa grávida na traseira do seu jipe militar,
o seu cabelo loiro tremulando ao vento de um bomba de napalm, que
o prenda ao pó onde as suas filhas vão crescer,

com seus dedos em bolhas & Agente Laranja, que elas
rompam as fileiras verde-oliva, agarrem o nome pendurado

em seu pescoço, o nome que elas põem sobre as línguas
para aprender mais uma vez a dizer viva, viva, viva – mas, se

não for possível nada mais, que eu possa criar esse raio da morte
como uma cega que costura de novo um pedaço de pele

no corpo da filha: Sim – que eu acredite que nasci
para rearmar este rifle, brilhante e bem lubrificado, como um verdadeiro

vietcongue, como as pegadas de fantasmas toldadas na chuva
enquanto me agacho entre os alvos – & rezo

para que nada se mova.

*Poemas do livro “Céu noturno crivado de balas”, Editora Âyiné, 2019.
Tradução de Rogerio Galindo