Wilson Alves-Bezerra, nascido em São Paul0, em 1977, além de poeta é doutor em literatura comparada pela UERJ e mestre em literatura hispano-americana pela USP, onde também se graduou. É professor de Departamento de Letras da UFSCar, onde atua na graduação e na pós-graduação. Traduziu obras de Horacio Quiroga, Alfonsina Storni e Luis Gusmán. Foi o na categoria Poesia (Prêmio Escolha do Leitor), da 58ª edição do Prêmio Jabuti, em 2016, com o livro de poemas em prosa. Suas obras já foram publicados no Brasil, Chile, Colômbia e em Portugal.

XIV.

O cheiro de hotel barato que emana da cabeça.
O gosto de travesseiro mofado quase na
garganta. Cada ponto de pó, em fila, no trilho de
um facho pela fresta, para cima ou para baixo. A
casa da infância grande como uma solitária e tão
luminosa quanto; os velhos se cobrem com terra
num jardim sem brinquedos. As irmãs, ansiosas,
carregam uma lancheira com vômito e frutas, e
trazem o desandador. Cada movimento será
novo sobre a terra; dizem para não pisar na
grama, para não quebrar os ossos dos antigos,
que em paz. Os lábios de Eleutéria pararam no
meio da ida, a boca ainda cheia, a frase ainda
pouca. Pode-se parar tudo para recomeçar mais
tarde. A janela aberta, meio bilhete, a galinha
morta toda penas. Só o desandador não permite
parar. Bendita a boca sem lábios de Eleutéria,
suspensa à beira da voz.

*Poema retirado do livro “Vertigens”, publicado pela editora Iluminuras, 2015.

I.

O oxímoro dos seus seios vejo da fresta do meu
olho esquerdo, enquanto passa a página. Em
qualquer capítulo tateei para lhe saber as carnes.
Mas antes havia bulas, ditados das
professorinhas de redação, silêncio dos beats
preguiçosos, e um acróstico para suas joanetes.
O vento lança guardanapos. Gina mastiga, e eu
lhe sabia mais saborosa que feijoada em lata. Da
letargia de Gina segui adiante, a textura da
encadernação de cobra, seus movimentos, o
tilintar do brinco na minha língua, o fumegar da
cama, o trepidar do fósforo, e o que me faz
transpirar na testa ante o espelho que não vejo,
capítulo três ou capítulo quatro, a pior imagem,
prosseguia Gina, enquanto corrigia a vírgula e
me acentuava, quem foi que guardou a sua perna
que se abria, agora eu abro a página, não tem
figuras este livro tátil. Chega um cidadão assim
de curvado, pesa muito a sua moleira com
galinhas parnasianas da granja. Me oferece um
poema, criado com amor. Gina arrota, seu lábio
toca o dedo que toca o garfo que toca – nisso eu
me viro e vejo. A língua em que foi escrito eu
molho com uma saliva bêbada. Devora um
pouco da minha memória. O poeta necessário
tem um latifúndio produtor de imagens. Torro a
chama do pavio com o dedo, só por precaução.
E eu sempre soube, mas você me retrucava
notas contemporizando. No escuro, linguagem.
Sobretudo seus seios entre o livro. Não fosse a
tatuagem a língua não se excitaria. Peço outra
cerveja.

*Poema retirado do livro “Vertigens”, publicado pela editora Iluminuras, 2015.

JAULA

Do fundo da jaula
duzentos milhões de almas
na falta de uma rapadura
roem a aba do espírito nacional,
O espírito festivo, acolhedor, unívoco
celebra a morte
na falta da possibilidade de escolher
viver
no país,
ilhéu
ou bolha
que se chamou outrora
a Terra de Vera Cruz.

À míngua,
morde o cachorro
a língua.

Menina, você lambe as cinzas do tempo,
Por dentro você roi os dias que lhe habitam.
Do fundo dos olhos do massacre
do fundo da boca violada
da memória ferida
ouve-se
como grita a minha alma enforcada na minha tripa.

Eu sou a mera repetição
– a angústia de dizer o mesmo.
Eu sou o tempo que se copia.
Aqui morrem mil por dia.
Aqui morrem mil
Aqui vivemos sempre o mesmo
A entropia.

Eu sou o fim da esperança
e da nostalgia.
Eu sou o inimigo que você escolheu para lhe matar.
Minha boca cheia de lamentos
repete-se no tempo que não passa
Eu sou a miséria sem cachaça.
A queda do meu corpo na calçada.
Abri mão das esperanças,
vós que entrais
na jaula nacional.

Quanto tempo mais?
Não tarda.
Quanto tempo ainda?
Não finda.
Quanto tempo agora?
A hora zero.

Grite cada um dos seus ais
você não representa nada.
Mais nada. É fria a manhã.
Silenciosa a rua.
Os homens de bem foram trabalhar.
Os homens pobres morreram de frio.
As mulheres violentadas no confessionário.
As mulheres não vão poder falar.
Você vaga entre carcaças nuas
no dia mil do massacre.

Ainda tarda. Hora zero. Não finda.

No dia seguinte se celebra:
o trabalho liberta.
Você não quer entrar?
Ativa os músculos, libera as endorfinas.
Não quer entrar mesmo?
No dia mil e um do massacre
eu era magro e o forno ardia.
O meu líder dizia:
pode entrar, de peito aberto,
seu destemor salva minha família.

Terra de Maricas não mais, ele dizia.
Porque aqui se chama ainda
a terra do Pau Brasil.
Você viu?
Estupra-se ante o olhar complacente
do juiz.

Éramos o futuro.
Mas o Zweig meteu a bala na cabeça errada.

Não tarda agora
Não finda.

E você escolheu a dedo,
tão cedo,
o gatilho com a mão do inimigo.

Navegar era preciso
Um tiro certo vale mais,
Você disse.

Presidente, presidente,
eu me pergunto:
qual dos defuntos sou eu?
Minha cama na gaveta no IML
Minha família me liga e pergunta se sou eu na foto.
Não posso dizer, respondo,
porque não sei ao certo.
Já não sei ao menos
quem era seu na cena.

O juiz garante que sou eu,
mas me ressuscita para me meter na jaula.
Meritíssimo exala o espírito do tempo.
Corrói-me por dentro a mesma risada.

Não finda,
Não tarda

O magistrado enquanto julga pisa
na placenta da minha alma
enforcada na minha tripa.

*Poema que faz parte do projeto “Necromancia Tropical”, publicado em Portugal pela editora Douda Correria em 2021.

CHAMA

Queima ele, senhor,
o país que sobrou.

O mato, a mata, o matuto, o macaco
Tudo vai ser dizimado
Mata a menina na maloca,
Mata o molambo,
Mata o menino na escola,
Mata a matilha de lobos guará
Mata a mocambo,
Mata o mulato no metrô
Mata quanto se move
Mata o mico e a banana
Mata na maloca o malungo,
Arremata o morto no Catumbi
Mata tudo que se move por aqui.

Queima ele,
Queima muito, senhor,
o país que sobrou.
Queima quanto vive,
Queima fundo,
Queima, senhor.

Mata a onça
O tuiuiú em seu voo
A garça, a cutia, a moça
Asfixiada, o seu olhar de horror
Mata o jacaré, queima o angelim
Não deixa nada de pé
Queima, em mim, senhor,
É o certo,
Construir o deserto
Em sete dias,
para replantar depois
A obra de Cristo
cimentado
sobre a sombra sinistra
do rastilho do nada que ficou
Soja transgênica
gado nazista,
transfóbico
fazendeiro misógino
na chalana racista
do rio do pavor.

Queima ele,
Queima muito, senhor,
o país que sobrou.
Queima quanto vive,
Queima fundo,
Queima, senhor.
Queima meu alento
Queima meu alívio
Queima a história
Queima tudo quanto sou.

Funda sua Igreja de misérias
Sua igreja de mortos, senhor
Seu altar todo de cinzas,
Seu catecismo de iras,
Seus fiéis de horror.
Funda a igreja perversa
Na fazenda de ossos
Da terra do pau brasil

Frita peixe na chama
vista seca
Garganta trinca
Cabeça lateja
Nó no peito,
O mandatário consente
Queimar meus olhos,
Para votar consciente,
De novo,
Queimar meus dedos,
Para não dizê-lo,
Não saber da morte, nem do medo
Queimar pau, perereca, útero, grelo
Queimar quanto fulge,
quanto sangra,
quanto vive,
quanto sente.
Queima, prende, arrebente
Para que nada se regenere.
Queima que fazendeiro prometeu a pastor
mais igreja, quanto mais soja brotasse,
mata maldita, mata pisada, mata agreste,
A mata é a moita
A mata é pouca.
A mata é nada.
Mana água de cinza
Da bica da boca dos ratos.

Queima ele,
Queima muito, senhor,
o país que sobrou.
O pantanal é o forno
Do seu campo de concentração

Mata meu grito
Absorto
Meu horto de martírios
de horrores que causou.
Mata de novo
os cento e trinta mil mortos.
Mata, genocida,
quem já morre à míngua.
Mata, que há muita vida ao redor.

Vem que te queimo,
Jesus de azulejo,
Igreja de cheetos,
Pastor de tergal,
Fazendeiro organoclorado,
Que te caço,
Feito cada onça que você queimou.
Vem que a gente te mata.

Mata-Macunaíma
Mata-Muiraquitã
Mata-Mãe d’Água
Mata-Cunhatã
Mata-Maria da Penha
Mata-Prenha
de Amor
Mata-Marielle,
Mata-Mais amor
Mata Viva
Máxima
Mata Atlantica,
Amazônica,
pantaneira,
Atávica-Mata
Mata-Zumbi
Mata-Marighella

– Eu recuso a chama sinistra de quem me incendiou.

*Poema que faz parte do projeto “Necromancia Tropical”, publicado em Portugal pela editora Douda Correria em 2021.