Abgar de Castro Araújo Renault nasceu em Barbacena, Minas Gerais, no dia 15 de abril de 1901. Poeta, professor, educador, tradutor e político, ocupou a cadeira 12 da Academia Brasileira de Letras (ABL) e a cadeira 3 da Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL). Foi membro da Comissão Internacional do Curriculum Secundário da Unesco, no período de 1956 a 1959. Apesar de sua poesia não estar ligada a nenhuma escola poética, ele fez parte do grupo surrealista moderno e participou do movimento modernista de Minas Gerais. Abgar Renault faleceu no dia 31 de dezembro de 1995, no Rio de Janeiro.

PEQUENO QUADRO DE QUALQUER DIA DE VERÃO

Vagos ruídos de construção distante.
Vozes de crianças a disputar o vento que passa.
Árvores antigas inclinam-se pesadas
sob incisivas inscrições de eternos amores esquecidos
gravados a canivete nos troncos.
Longe, nas águas repousadas,
brincam e somem-se súbitos clarões
indecisos entre claro azul e não sei que verde.
Sob restos de um sol suarento a tarde
busca um simulacro de arrepio;
caminha a noite, a mesma noite de todo sempre e nunca:
deserto e insone o coração afunda-se na treva.

BARCO ABANDONADO

Ansioso barco de saudosas velas,
que praia seca todo o mar secou?
Na esteira de que frias caravelas
teu navegar de sonho naufragou?

Largado barco que falaste às águas,
guardas no casco a forma, o gosto, a voz
de ondas, fosforescências, peixes e algas,
e no mastro o voejar de um albatroz.

Velas rotas em ti empalidecem
ainda cheias de sal do oceano e céu;
tuas viageiras cores envelhecem
num porão sem memória, barco ilhéu.

Ó barco ilhéu ilhado nas areias,
ó leme entorpecido, já sem mão,
velas sem vento e, todavia, cheias,
gume da quilha, proa sem o vão,

o débil curvo nome do infinito
lavado pela espuma e solto no ar…
que água apagou o nome outrora escrito,
barco sem nome e só, barco sem mar?

DESINTEGRAÇÃO

Eu tenho o coração cheio de coisas para dizer…
E a minha voz, se eu acaso falasse,
seria a força de uma revelação!

Meu espírito palpita ao ritmo desordenado e aflito
de asas prisioneiras que se dilaceraram
na arrancada impossível da libertação e da altura.

Minhas mãos treme ainda ao contato
imaterial, sobre-humano e fugitivo
de qualquer coisa além e acima deste mundo…

Adormeceu para sempre no fundo dos meus olhos
a saudade de paisagens estranhas e longínquas,
que nunca, nunca mais voltarão neste tempo e neste espaço.

Doem meus olhos. Tremem, ansiosas, as minhas mãos.
Meu espírito palpita. Tenho o coração cheio de coisas para dizer…
Eu estou vivo, Senhor! mas, em verdade, é como se estivesse morto.

POEMA DOS POEMAS

Quisera, sim, e mil vezes sim,
ser, sob os teus signos, o teu poema:
acender-me em flama de poesia
para ofertá-la à tua coroa;
debaixo do esplendor do teu sólio
ou da clara carne dos teus pés,
de sob eles ascender em luz
pela escadaria sem degraus
que leva ao teu puro firmamento;
ser consoante, vogal ou em til
de alguma palavra entre os teus dentes,
vaga nuvem do teu pensamento,
fragmento de nada em tuas mãos;
possuir teu contato mais longínquo,
estar em ti por um milionésimo
de segundo ou ser visto por ti,
falado e ouvido numa linguagem
desconhecida dos dicionários;
ver-me refletido na magia
do teu oculto espelho de sol
e cristalinas douradas águas;
ser ave de música em teu sonho,
saber-me em ti – o teu habitante,
o teu habitante único e só,
escravo e guarda da tua ilha;
sentir em torno desta pobreza
do meu triste escasso território
grades de ouro vivo do teu reino;
aumentar à glória do teu céu
alvas nuvens de volúvel vento;
ser teu solo e tua doce relva,
deixá-los erguerem-se buscando-te
e os teres teus, íntimos sob ti,
seria vestires dos teus astros,
ó Suprema, ó Sonho e Eternidade,
as paisagens de barro do meu nunca.

O POEMA CONDUZ O POETA

A poesia acontece de repente,
tal como um grande amor ou uma rosa:
escorre uma palavra de uma pena
ou de um lápis azul, e outra palavra
a ela se casa, e súbito desperta
um novo som ou uma idéia nova,
que criam sobre os lábios e nos olhos
musicais pensamentos, cores, formas.
A poesia tem sua vida própria,
segue linhas de curvas insabidas,
e o fim de cada poema que escrevemos
é incerto como todos os destinos.
O poeta pensa que dirige o poema,
e é por ele, em raízes, dirigido;
a poesia é senhora de si mesma:
Vida – acontece e acaba de repente.

*Poemas do livro “Obra Poética”, Editora Record, 1990.