Ademir Assunção  nasceu no dia 2 de junho de 1961, em Araraquara, São Paulo. Poeta, escritor, jornalista e letrista, venceu o Prêmio Jabuti 2013, de Melhor Livro de Poesia do Ano, com  “A Voz do Ventríloquo”.  Com uma obra poética caracterizada pelas percepções e críticas sobre os acontecimentos mundanos, tem poemas e contos traduzidos para o inglês, espanhol e alemão, e publicados em livros e revistas na Argentina, México, Peru e EUA.

OUTROS DIAS

lembra quantas tralhas
deixadas no caminho

planos, crenças, brigas
olhares estranhos, tristes intrigas

o vento sibilando nos cabelos
soprando ares de outros dias

borboletas bêbadas de pólen
nuvens carregadas sobre o mar

tudo muito vivido ao redor?

lembra quantos gestos
esquecidos no caminho

caixas de sapato, marcas de cigarro
figurinhas de super-heróis

poemas inacabados, longos
papos noite adentro

a chuva fina em nossa pele
doce névoa, brisa branda

carícia entre lençóis?

A CANÇÃO DOS PEIXES

submersos
nas funduras

(de onde
alma alguma
retorna)

entre algas
rochas e restos
de naufrágios

cegos
e sem memória

os peixes
cantam
seus blues

canções inaudíveis
de um tempo
sem tempo

que ninguém
(nem coltrane
nem hermeto)
pode ouvir

em lugar algum

NA COVA DOS LEÕES

após sete dias e sete noites de intensas
torturas psíquicas nos subterrâneos da seita
capitalismo transnacional do oitavo
dia de glória onde pastores viciados em jogos
de dados e executivos de grandes corporações
praticavam a arte da extorsão do estelionato
e do entretenimento cultural o domador-de-leões
paulo de tharso escreveu em sua epístola
aos que ainda não abandonaram o barco e insistem
em beber sozinhos no canto mais escuro
do balcão:

“de costas pra deus
de frente pro caos”

e no nono dia fez-se o verbo, e o verbo
virou verborragia, palavras inúteis,
sílabas apenas sílabas, letras,
desenhos, grafias

O OLHO AZUL DO MISTÉRIO

desço dos céus para beijar
os lábios quentes da fera – desço,
vejo dragões pastando na grama
azul, incêndio nas cortinas
dos apartamentos – desço,
escuto um coro de crianças
bêbadas, vozes batendo no casco
do navio fantasma ancorado
no Cais da Última Utopia – vejo,
sinto na pele os dedos de uma androide
aflita, quase em pânico, mãos
de neblina, pálpebras que se fecham
toda vez que toco o bico dos seios – escuto,
encaro olho no olho o olho
do Grande Gavião Terena, leopardos
lambem o leite da Via Láctea, saltam
com garras envenenadas sobre
as penugens de Vênus, penetram
o cu da lua, pregas se rompem,
espelhos se estilhaçam e rasgam a carne
dos banqueiros que sugam o vinho
da vida com canudinhos cedidos
pelo senhor McDonald – sinto,
e por isso escrevo, e por isso deixo aqui
palavra escrita na água, na carne
dos que sofrem, escrevo com sangue, escrevo
com porra nas paredes das salas
iluminadas com a luz monótona dos aparelhos
de televisão, escrevo com mijo nos muros
das cidades do Ocidente, convoco hidras,
provoco tumulto, estrelas, sentam-se no sofá
e tomam café marroquino, os sentidos
mixam o onde e o quando na câmera
oca de ecos, a pele se arrepia, relógios
praticam saltos ornamentais em piscinas
vazias, neve ao redor dos cabelos, chove
na terra inteira, dedos de açúcar tocam
a escama dos peixes, o corpo todo pressente
a presença de um deus, e você finalmente encara
o úmido olho azul do mistério

SOL NEGRO & CABEÇAS CORTADAS

tenho gritado raios elétricos, chuvas
que não passam, maremotos, tremores e ruínas

grito: e meu grito ilumina
toda a cidade de campinas

grito: e meu grito desespera
todos os torcedores da ponte preta

grito: e o sol rola em slow motion
como uma cabeça tarahumara, em direção ao gol,

deixando um rastro de incêndio no gramado

BILLIE HOLIDAY NA PORTA DOS FUNDOS

quanto abismo cabe
na palavra abismo,

quantos passos até a borda
da estrela-pantera-negra,

quantas brumas brancas,
quantos acordes de blues,

quantas noites sem sono
quantos abalos sísmicos

para sossegar o dragão
que cospe esse fogo azul

chamado névoa, vulcão,
solitude?

*Poemas do livro “A Voz do Ventríloquo”, editora Edith, 2012.