Adelaide Ivánova nasceu no Recife, Pernambuco, em 1982. Poeta brasileira de ascendência russa, também é jornalista, fotógrafa, escritora e tradutora. Seus poemas e ensaios foram traduzidos para o alemão, galego, inglês, catalão, espanhol, grego, italiano, estónio, sueco e russo. Suas reportagens fotográficas fazem parte do acervo do Brandenburgisches Landesmuseum für moderne Kunst (Alemanha), L’arthotèque – Museu de Belas Artes (França) e Galeria Murilo Castro (Brasil). Em 2018 ganhou o Prêmio Rio de Literatura com seu segundo livro de poesia, “o martelo”. Atualmente mora em Berlim, Alemanha.

RAIVA

Depois de tudo que passei
ficaram os cacos:
Tinindo
Transtorno de estresse pós-traumático
Dermatite atópica
Disidrose
Eczema
Síndrome do intestino irritável
Asma
etc.

Há ainda as doenças temporárias,
que peguei por acaso:
Sarna, sarampo, papeira
Catapora, herpes, covid
Dengue, lombriga, gripe

Há aquelas as quais driblei,
sei lá como:
Cólera, filariose, varíola,
Peste, esquistossomose, tracoma,
Oncocercose, malária, chagas
Lepra, leishmaniose, raiva

Se bem que raiva eu passo muita

CANDIDÍASE

Caramujo fungo cogumelo ouriço
ostra pântano charco floresta fossa
eu
os bichos
terríveis que levantam
acampamento em colchões celas
e sobrancelhas

Tenho na cabeça
boletos despejos preocupações
e entre as pernas
cultivo fazendas hortas
que produzem
champignons bolor levedura mofo
que se reproduzem e produzem
fluido amarelecido poesia ruim cheiros estranhos
comichão calor estresse água branca
que demandam
receita médica farmácias cotonetes elástico
fila paranoias piadas máscara lenços de borracha
para que o beijo grego seja higiênico ou eugênico

Fazem parte do corpo ainda
fronte têmpora cartilagem septal céu da boca
sonhos de adolescência
benzina valium heroína assuero xerxes abraão e jacó
seus assuntos, suas portas trancadas

Copinhos descartáveis exames de urina vibrador
diafragma O.B. DIU nuvaring
(marca resgistrada)
e outras siglas
indecifráveis
cabides agulha de tricô pessários
aspirador de embrião, de pó
seringa de plástico
clotrimazol etonegestrel etinilestradiol
vagina adentro
vagina acima
vagina afora
vagina abaixo

Autobiografia literária na Idade do Ferro
.                                                                             Quando eu era criança
.                                                                               brincava sozinho num
.                                                                             canto do pátio da escola
.                                                                                                totalmente só.
.                                                                                               Frank O’Hara

“Quando eu era criança
brincava sozinho num
canto do pátio da escola
totalmente só

Eu odiava a corte e eu
odiava jogos, animais eram
perigosos e dragões
nos levavam pra longe.

Se alguém me procurava
eu me escondia atrás de
um salgueiro e berrava eu sou
uma bastarda.

E aqui estou, o
centro de toda a realeza!
aprendi a ler e a escrever!
Quem diria!”

GUAIAMUM
.                                                                       Fio pra nascer tem que ter pai
.                                                                              Mas você que não tem pai
.                                                                                        É fio de guaiamum
.                                                                                                Elino Julião

O ciclo reprodutivo dos guaiamuns está
intimamente ligado às fases da lua
no período de desova as fêmeas emigram
até cinco quilômetros para o mar
eu que ando pra frente e tenho pernas de uns 80 cm
preciso de 70 minutos pra andar o mesmo percurso
a guaiamôa com suas perninhas bem menores
e andando de lado precisa de um a dois dias

Na época de desova a carapaça de guaiamôa muda de cor
é o jeitinho dela de dizer que tá pra jogo
a fertilização é poligênica e interna que ela não é otária
ela armazena e mantém depois da cópula
espermatozoides ativos em duas espermatecas
repito: ES-PER-MA-TE-CAS
sim, uma biblioteca sendo que de gala
que se comunicam com as duas gônadas
o que lhe permite fecundar os ovócitos
sem ter que perder tempo com macho

1650 – 1720, Confederação dos Kariri

Entendi nada, respondi, girando os olhos
pra catraia da outra aldeia
nos chamando pra guerrear juntas
usando aquela língua véa feia.

A essa altura já fazia bem três anos
que botamos as diferenças de lado
tentando botar pra correr
o inimigo comum, insuportável.

Olhe que mesmo sem gostar
daquele bando de biraia
pouco tempo antes quase tomamos Natal
de tão valentes e organizadas!

Bora noiada ti vai ficar batendo boca ou vem pra
emboscada? gesticulou a tribufu sem me dar
escolha. Não gosto de tu mas vou pela peitica,
respondi levantando, uma mão no bacamarte

e a outra na azagaia, sem fazer ideia da chacina
que viria na sela dos paulistas, mas não importa:
só quem não pode com o pote
é que não pega na rodilha.

*Poemas do livro “Asma”, Editora Nós, 2024.