Alice Carvalho Cumplido de Sant’Anna nasceu no Rio de Janeiro, a 24 de maio de 1988. Poeta e jornalista, começou a escrever aos 16 anos, durante uma viagem à Nova Zelândia. É colaboradora da revista Serrote, publicada pelo Instituto Moreira Salles, e do jornal O Globo.

*

Um enorme rabo de baleia
cruzaria a sala neste momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não tem conto
era abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto e casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia, e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela.

meu assassino

hoje encontrei meu assassino
dispersa, olhei
para a plateia e lá estava ele
os olhos fixos em mim
soube na mesma hora
de quem se tratava
tentei disfarçar a chuva que deixou a franja
bagunçada na frente dos olhos
mas o assassino me olhava
e eu revidava: era um jogo
sabia que a qualquer respiração
se eu me desconcentrasse ou se tropeçasse
ele não perdoaria nunca (isso já aconteceu antes)
a diferença é que agora sei
como ele se chama sei
o formato do maxilar
e como ele me olha com esses olhos de assassino
pensei em chamar a polícia, os jornais
pensei sobretudo
em mudar de cidade
e não contar para ninguém
assim o meu assassino me procuraria
nos mesmos lugares de sempre
mas frustrando voltaria para casa
e me escreveria longas cartas
dizendo fique avisada, seus dias estão no fim
contudo meu assassino jamais seria
capaz de me encontrar
e por isso as longas cartas
que ele levaria ao correio muito bem
dobradas em envelopes com cheiro
de canetinhas coloridas
não chegariam a parte alguma
pois não constaria o meu nome
em nenhuma página amarela
ou conta de luz
meu assassino bateria na porta
da minha antiga casa
eu o convidaria para entrar
ofereceria um café e diria
que pena! que desencontro! que perda!
ele não mora mais aqui

bolo de laranja

aquele dia
você tão distante
preparou um bolo de laranja
mas tropeçou
no ingrediente: a turma toda
que esperou ansiosa
cuspiu na pia
farinhas que era sal
açúcar que era fermento
o gosto intragável
e o seu choro em público, mal
conseguia se explicar
nem na própria língua
muito menos praqueles gringos
que não entendem nada
nem abraçar eles sabem

*

Impossível sentar-se diante de tantas cadeiras
que aguardam o momento
em que serão úteis

as costas espalmadas são pacientes
podem ficar para sempre na espera

os pés das cadeiras quando tombam
apontam para cima
são insetos de casca redonda
que não desviram sozinhos

ausência

tenho te escrito com calma
carta em um caderno azul
arranco da espiral e não posto
por preguiça ou nem morta
tenho medo da espera
durante dias ou semanas um animal horrível
(espécie de raposa) vai me perseguir
por dentro, ou serei a mesma
(um rato?) a me roer
enquanto a resposta não chega
perco muito tempo tentando
dar nomes aos bichos
que sobem a cortina do quarto

*Poemas do livro “Rabo de Baleia”, editora Cosac Naify, 2023