Ricardo Silvestrin nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, a 17 de maio de 1963. Poeta, músico e escritor, é Mestre em Letras pela UFRGS. Com quase 30 livros publicados, entre poesia, romances, contos e traduções, recebeu por cinco vezes o Prêmio Açorianos de Literatura. Na música é um dos três criadores da banda os poETs e já atuou nas bandas Os 3 Poetas e Os Ladinos. Atualmente, desenvolve sua carreira solo com o grupo Ricardo Silvestrin & Banda.
ROSTO
O rosto do vento impresso na rocha
mira o mar na praia deserta.
Um dia estive lá.
Areia do tempo e o próprio vento
refazem a face que olha o mar.
Eu vi com meus próprios olhos.
A rocha de perfil,
pedaços da cara em movimento.
Eu sozinho na beira.
Há anos o semblante da pedra,
a respiração ofegante da ventania e do mar
esperam a minha volta
Se me olharem de frente,
talvez me conheçam, estáticos,
nessa praia onde tudo se move.
CLIC
Uma foto foi um fato
com antecedentes
e consequências
independentes
do retrato.
Um recorte de segundos.
Se voltar àquele tempo,
vai ver um buraco.
Hoje é um contrassenso,
um contratempo.
Não fosse a luz
impressa no papel,
este que nos olha
não estaria aqui agora.
CIGARRO
Ninguém pode ficar sobre a pedra,
mão no queixo a vida toda,
a menos que seja uma estátua.
Se você respira, pode dançar.
Se você não sabe, imite quem não sabe dançar.
A noite é longa pra quem não sabe dançar.
Eu poderia resumir a minha vida em duas palavras.
só não sei pra que isso serviria.
Agora estou cansado,
vamos sentar um pouco,
me fale qualquer coisa.
Eu ouço e respondo sem entender,
a música está muito alta,
ninguém mais fuma dentro do bar,
melhor para o cheiro das roupas.
O quê?
Melhor para o cheiro das roupas!
MÚSICAS
Essa música não te uma palavra e é alegre.
Essa outra é triste e nenhuma palavra disse.
Uma está na orelha esquerda, outra na direita.
Se essa música falasse – a música triste,
falaria só com palavra que ainda não existe.
Se a alegre com palavra dissesse o que a alegrava,
seriam palavras secretas que ninguém decifrava.
Sem palavra se entende melhor a tristeza
e na alegria se fica sem palavras.
Foi isso que cada música,
a alegre e a triste,
sem dizer
me disse.
SEGURO
Ninguém pode viver numa canção
como no útero protegido da mãe.
Uma hora vai sair,
a canção tem que acabar.
Há músicas dissonantes e inacabadas,
partituras para executar o silêncio,
baquetas quebradas,
cordas rompidas.
Sobra a melodia da fala,
linear e rala.
Ninguém,
se alguém não for assim,
me diga.
Ninguém fez seguro
contra a infelicidade.
HIPÓTESE
É bem provável
que a esta hora
o peixe repouse
de olhos fechados.
O urso recoste
a cabeça na pedra,
a garça esqueça
o que nunca
retém na memória.
Posso sentir daqui
a respiração silenciosa,
o descer e subir da barriga
do leão marinho,
da baleia,
do golfinho.
Aqui,
eu,
que não aprendi a voar,
só a fazer ninho.
VOO
O piloto do avião de bombardeio
não conhece o dono da padaria,
sentado no caixa, quase dormindo.
Se o conhecesse, não o mataria.
Ninguém toca bomba em um amigo.
Também nunca viu o barbeiro,
que corta e reparte no meio,
sem caminho de rato, o cabelo
de meninos, jovens e velhos.
Um deles é como seu filho,
que vai nascer no futuro.
Enquanto esse, agora,
depois de ver tudo claro,
fecha os olhos no escuro.
HOJE
Não é preciso dizer muita coisa,
só a coisa certa.
A hora certa de dizer a coisa toda,
a hora de ficar em silêncio.
Mas qual silêncio?
O que diz tudo,
o de quem não sabe o que dizer,
o que incomoda,
o que pede uma palavra tola,
qual silêncio você quer ouvir agora?
Me diga com os olhos,
com as mãos,
recite o dicionário.
Quem quiser que forme frases,
as palavras estão todas aí
em ordem alfabética.
Invente novas se precisar,
importe de outras línguas,
ressuscite línguas mortas.
Hoje pensei
que devia reaprender
as usar as palavras.
*Poemas do livro “Typographo”, Editora Patuá, 2016.