Boris Paul Vian nasceu a 10 de março de 1920, em Ville-d’Avray, na França. Poeta, romancista e também muito ligado à música, principalmente ao Jazz, é visto como um dos personagens mais polemistas do movimento surrealista, abordando poemas anárquicos e filosóficos. Extremamente original, trouxe para a sua obra o uso de neologismos, além de cenários amplamente imagéticos, abstratos e alegóricos.

Para além da sua veia literária, Vian foi também um membro muito influente no Jazz francês, servido de elemento de ligação em Paris de Hoagy Carmichael, Duke Ellington e Miles Davis. Escreveu muitas canções que alcançaram e continuam a alcançar uma grande notoriedade fazendo hoje parte do patrimônio cultural francês como Le Déserteur, La Java des bombes atomiques. Chegou a ter uma banda formada com seus dois irmãos que tocava no famoso clube Quartier Latin Le Tabou.

Boris Vian morreu com apenas 39 anos, em 23 de junho de 1959, em Paris, França.


SE OS POETAS FOSSEM MENOS BESTAS

Se os poetas fossem menos bestas
E se fossem menos preguiçosos
Fariam todo o mundo feliz
Para poderem tratar em paz
Dos seus sofrimentos literários
Levantariam casas douradas
Cercadas por enormes jardins
E árvores cheias de colibris
De rustiflautas e de aqualises
De pardongros e de luziverdes
De plumuchas e de picapratos
E de pequenos corvos vermelhos
Que soubessem tirar nossa sorte
Haveria grandes chafarizes
Jorrando luzes de zil matizes
Não faltariam duzentos peixes
Do crocantusco ao empedraqueixo
Do trilibelo ao falamumula
Da suazmina ao rara quirila
E de guardavela ao canifeixe
Provaríamos de um ar fresquíssimo
Perfumado pelo odor das folhas
Comeríamos quando quiséssemos
E trabalharíamos sem pressa
A arquitetar escadarias
De formas nunca dantes sonhadas
Com tábuas raiadas de lilás
Lisas como só ela sob os dedos
Mas os poetas são muito bestas
Para começar, eles escrevem
Ao invés de pôr a mão na massa
Isso lhes traz profundos remorsos
Que levam consigo até a morte
Radiantes por sofrerem tanto
O mundo os aclama com requinte
E os esquece no dia seguinte
Se a preguiça não fosse mania
Teriam fama por mais um dia.

A VIDA É COMO UM DENTE

A vida é como um dente
No início nem ligamos
Contentamo-nos em mastigar
Depois de repente se estraga
Faz sofrer e o suportamos
E o tratamos e os cuidados
E para ficarmos realmente curados
É mister arrancar… a vida.

LA VIE EN ROUGE

As mães nos fazem sangrando
E nos prendem a vida toda
Por uma tira de carne viva
Somos educados em gaiolas
Vivemos mastigando pedaços
De seios arrancados sangrando
Que penduramos na borda dos berços
Temos sangue no corpo todo
E como não gostamos de vê-lo
Fazemos correr o dos outros
Um dia, não haverá mais
Seremos livres.

QUERO UMA VIDA EM FORMA DE ESPINHA

Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo de um troço solitário
Quero uma vida em forma de areia nas mãos
Em forma de pão verde ou de moringa
Em forma de sapato velho
Em forma de tiroliroliro
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra coberta de seixos
De cabeleireiro selvagem ou de edredom louco
Quero uma vida em forma de você
E a tenho, mas ainda não é o bastante
Nunca estou contente.

MORREREI DE UM CÂNCER NA COLUNA VERTEBRAL

Morrerei de um câncer na coluna vertebral
Será numa noite horrível
Clara, quente, perfumada, sensual
Morrerei de um apodrecimento
De certas células pouco conhecidas
Morrerei de uma perna arrancada
Por um rato gigante surgido de um buraco gigante
Morrerei de cem cortes
O céu terá desabado sobre mim
Estilhaçando-se como um vidro espesso
Morrerei de uma explosão de voz
Perfurando minhas orelhas
Morrerei de feridas silenciosas
Infligidas às duas da madrugada
Por assassinos indecisos e calvos
Morrerei sem perceber
Que morro, morrerei
Sepultado sob as ruínas secas
De mil metros de algodão tombado
Morrerei afogado em óleo de cárter
Espezinhando por imbecis indiferentes
E, logo a seguir, por imbecis diferentes
Morrerei nu, ou vestido com tecido vermelho
Ou costurado num saco com lâminas de barbear
Morrerei quem sabe sem me importar
Com o esmalte nos dedos do pé
E com as mãos cheias de lágrimas
E com as mãos cheias de lágrimas
Morrerei quando descolarem
Minhas pálpebras sob um sol raivoso
Quando me disserem lentamente
Maldades ao ouvido
Morrerei de ver torturar crianças
E homens pasmos e pálidos
Morrerei roído vivo
Por vermes, morrerei as
Mãos amarradas sob uma cascata
Morrerei queimado num incêndio triste
Morrerei um pouco, muito,
Sem paixão, mas com interesse
E quando tudo tiver acabado
Morrerei.

*Poemas do livro “Poemas e Canções”, Nankin Editorial, 2001.
Tradução de Ruy Proença.