Fátima Maldonado nasceu em Santo-Amaro Sousel , Portugal, em 1941. Poeta, crítica literária e jornalista, iniciou a sua trajetória poética em 1980 com a coletânea intitulada “Cidades Indefesas”, mostrando uma certa herança do Expressionismo, pela elaboração vocabular e pelo culto do excesso a nível temático. Dentre os temas mais abordados, ela apresenta a violência do imaginário sexual, assumido pela própria condição feminina. Publicou ainda: Os Presságios (1983), Selo Selvagem (1985), A urna no Deserto (1989), Caça e Persuasões (com Paula Rego, 1991), Cadeias de Transmissão (1999) e Vida Extenuada (2007).

 

URNA NO DESERTO

Já não páras ao som das laranjeiras,
o silvo da paixão amorteceu,
o lacerar dos grifos
agita devagar a romãzeira,
horizonte vivaz anoiteceu.
Ardem sevícias nos pálios das comédias,
ruem gonzos nos pátios das contritas,
repúdios acontecem em vésperas de concílios,
impedem-se os quebrantos nas rotinas,
fere-se a uva no copo de cristal,
o bago no ateia contusões
nem cega a fruta o gume do cilício
e vibra o pulso ao impelir a dança.
Círios amotinados não acendem,
o leito não acolhe favoritas.
À sombra da cintura a magnólia
urge pavões,
cisma na voz ausente desespero,
range areia no triângulo da pata.
O trípode da morte encosta-se à coluna
e o vento não abriga, da roseira, a urna no deserto.

AS GRINALDAS DA GUERRA

Quem te disse
que não estaria longe
se regressada a casa
me afastasse?
Quem te disse que não poderias falar-me
de mãe a bicho
de fonte a jarro
de tecto a telha?
O ódio que te tenho
como podes supor
que esmorece?
Os beijos sobre palmas
só permitem
céptico adiar de execuções
incrédulas entradas triunfais
em sábados de Ramos.
O irritante herói
a provocar traição
o desmedido orgulho
a disfarçar o medo
que não chegue depressa
o vil comboio.
E se não se detém
ou se não o vislumbra?
Por isso não pára de agitar-se
e chama a atenção com fogos e bandeiras
a espera insuportável
transforma-a em arena
acomete nas feras
farpas de abandono.

POEMAS PARA UM INCESTO

Trocares o meu
por outro corpo à espera
é um vago sintoma que se imiscuiu
na suspeita matriz
recôndita cisterna
onde abeberam no mais limoso chão
as sacrílegas tardes
da degola materna.
A esparsa neblina enchia cada porta
de um velo putrescível
as casa estagna na poça das ausências
e o desejo sucumbe na falésia.
Nessa mão vitrificam
restos de placenta
amoras pintam no recorte dos dedos
o proibido mosto,
essa mão que decénios
enrugaram lisura
puxou-te em direção à cama onde nasceste.
Sibilante esconjuro
te marcou o fácies do selo ritual
e te obriga à errância na vereda deste trilho.
Enquanto nos embalam
nas camas aquecidas
onde um urso e um pato ouviam os queixumes
da fome de mais leite
tu chegavas à zona onde era proibido
recordar o processo das solenes gracinhas,
a palavra mal dita,
o fígado desfeito à volta das cenouras.
Só no seco coçar
da memória exaurida
sôfrega migalha a confidente apanha
à espera se um deslize abranda a contenção.

DECADÊNCIA

Indecente a palavra
cerrou a emoção,
em muitas vidas
aprende-se tão pouco.
No fim são quatro pérolas
num taça de vidro.

*Poemas do livro “Cadeias de Transmissão”, editora Frenesi, 1999.