Bruna Mitrano nasceu em 1985 no Rio de Janeiro. Filha de camelô e neta de lavadeira, é mestre em Literatura pela UERJ, professora, escritora, desenhista e articuladora cultural. Publicou poemas, contos e desenhos em jornais, revistas e antologias no Brasil e no exterior. É autora dos livros “Não” (Ed. Patuá, 2016) e “Ninguém quis ver” (Companhia das Letras, 2023).

a setenta quilômetros do mar

moro a setenta quilômetros do mar
moro a duas horas e meia do mar
moro a dois ônibus ou
vinte e quatro estações de trem e
onze estações de metrô
do mar

moro a tanta preguiça de ir
até o mar

mas todo dia piso
nos dois montes de areia
da calçada do vizinho
e lembro

que só esquece o mar
quem mora perto do mar

eu não esqueço
que moro onde não escolhi
que moro onde posso morar e
às vezes é madrugada e faz silêncio

às vezes é madrugada e durmo
ouvindo o barulho da água
do valão diante a minha casa

e acordo com a boca salgada

.         nos olhos dois montes de areia.

teresa

a primeira vez que vi
incendiaram um animal vivo
não pensei na justiça
só pensei no corpo
por que tão pequeno
por que tão sem alma

a segunda vez que vi
incendiaram as casas do meu bairro
não pensei em mais nada

os olhos alimentaram o fogo
e Omolu dançou sob as palhas.

ninguém quis ver

nasci com dentes podres
coisa de família
minha avó ficou banguela
aos vinte e seis
os tios todos
têm dentaduras
criança diziam tão bonita mas
assim
não vai arrumar namorado
eu não queria arrumar namorado
arrumei vários ossos quebrados
ossos fracos
coisa de família
disseram bruna você parece
que pode partir ao meio
a qualquer momento
eu parti muitas vezes mas
ninguém quis ver
que eu não tenho namorado
e que meu hábito
de não escovar os dentes
é porque nunca paro de comer
porque o que sinto não é fome
é o sentimento da fome
que talvez seja coisa de família
nunca entendi essa coisa de família.

no silêncio

não se diz não prum homem
armado até os dentes

o medo do que já aconteceu ainda
é medo?

sangrei no silêncio
nenhum grito de revolta em meu nome

faz dois anos quinze dias e seis horas que não choro

as pessoas falam
as pessoas sempre falam mas

nenhuma voz sustenta
ou abale
o corpo violado.

imprecação

que a chuva poupe as telhas pobres
e mais nada.

*Poemas do livro “Ninguém quis ver”, Companhia das Letras, 2023.