Carolina Floares Boreaz nasceu na Base Naval do Alfeite, Portugal, a 27 de novembro. Poeta, atriz, bailarina, também trabalha trabalho como editora, revisora e tradutora literária. Recebeu o Prêmio de Melhor Atriz do Festival de Teatro do Rio de Janeiro em 2012 e duas indicações de Melhor Atriz no mesmo festival e no Festival Internacional de Cinema de Madrid em 2015. Tem publicados três livros de poesia, contos em revistas e coletâneas e dois romances traduzidos do romeno para o português de Portugal e do Brasil.
autorretrato
quem queira destrinçar seu nome
recordo-me a renovada fome o fuso avariado
recordo-me posto shell a
questionar o que a estrada faz ali
recordo-me as chaves de casa
perdidas dentro de casa
que um dia eu vou achar no bolso
de um casaco de inverno, um dia
que faça gelo, aqui
recorda-me vento a definir a densidade
da folharia
da cidade, qualquer uma que podia ter sido
recordar-me a fotografia colorida que não tirei
com os olhos que não tive, e que sobrevive
no negativo impossível
de revelar nos anos 10
re-cor-de-mim
recorde-me
não em silêncio
mas o silêncio em mim
recorda-me a pesar os mais e os menos
menos os mais e mais os menos
recorda-me apesar dos mais ou menos
recordo-me o galho falho a ver-se viagem
recorda-me o espanto do espantalho
a personagem que você vai ver no cinema
mas que na vida real por algum motivo risível
você quer invisível
então, ao menos recorde-me
algodão a gastar chão
poemas a gastar língua
a luz de um poste de rua a tentar
equilibrar-se
na grade que se vê de dentro
e sorria, quando me recordar
de véu
espesso longo céu noturno
que andei a arrastar pelos cômodos
que me impediu de chegar ao mundo
morrer é muito mais manobrável do que nascer
e para tanto nenhuma casa corpo nome continente é
suficientemente grande
nem seguro
recordo-me quem gerundiou isto
enquanto um rinoceronte passar pela avenida
e o tocador de arcodeon der uma tossida mas sem parar
de tocar
(e depois me diga se foi escarro ou charme recordar esse um
de meus nomes)
apuração
em vez de me perguntares o que eu quero
aprende a perguntar-me
quem é o eu que nada quer
matryoshka
viveu dentro de um romance ruinzinho por cinquenta anos,
um best-seller aguado cansativo que a autora, porém, não
cansava de aguar, ou, como se diz, escrever. nada era muito
surpreendente porque o raio da autora fazia questão de
usar e abusar daquela técnica escolar dos indícios e, ainda
por cima, como era um romance ruinzinho, já se vê que eram
indícios nada sutis, de modo que, com um mínimo de esperteza,
mais intuída do que tida, ela ia costurando de antemão,
maisoumenos, tudo que lhe ia desacontecendo. até que, no
destempero de mais um dia, pensou em levantar o peso de
olhar para cima e, ainda de esguelha, de esguelha e tudo,
decidiu-se a rebentar com a pele do papel, e, assim, a esmiuçar
fibras, a desviar-se de palavras, entrou num lugar chamado
vida, não havia nada na vida, era um espanto de deserto.
no deserto todos os caminhos são igualmente bons
– por isso pôs-se simplesmente a andar, sem saber mais nada
kafkiana-barthesiana
o instante de despertar é o mais arriscado do dia. uma vez superado
sem que a pessoa tenha sido deslocada, pode passar o resto do
dia tranquila – ao contrário, Franz, ao menos hoje eu diria
ao contrário: … uma vez superado sem que a pessoa ainda se
veja no mesmo lugar, pode passar o resto do dia tranquila.
meu lápis é uma espécie de espião do meu corpo, no mundo.
para, então, voltar a ele, trazendo os desenhos de luz &
sombra, o pássaro que passa atrás da fiação, a poça, o
olhar perdido da moça na tentativa de revolução. o corpo, nas
coisas do mundo, vai se percebendo, e, nisso, pasmemo-nos,
entendendo o próprio desapego do entendimento como única e
assombrosa forma de continuar.
meu lápis é a fresta – e a festa – deste meu corpo. que é esse
fenômeno rachado, essa corruptela de algum corpo cósmico,
essa versão frágil das rochas, dos oceanos, essa versão pela
qual vale a pena chorar.
a língua define-se menos pelo que permite dizer do que por aquilo
que obriga a dizer, diz-me Roland, com ele, ao menos hoje,
concordo.
invasivo como a poeira do mundo, esse lápis aparece-me onde
menos se esperaria. mas só porque meu aparecimento aqui foi
a primeira invasão.
e passam-se os séculos nisto
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cabimento: preciso alargar a vida, o que é impreciso.
de quedas e voos
estou um pouco além, alguns passos – capazes de decidir as
súbitas reaproximações dos continentes e s suspensão da rotação
das galáxias. alguns passos apenas mas decisivos, esses
que nos caminham. e, no entanto, não posso decidir a solo, o
que é decisivo nem sempre pode decidir – haja dobras para
dar nesses quilômetros e horas. tanto poder em minhas mãos
espera, esmera e dá flores nesta primavera a sul. as que te
dou, cortando-me. sem olhar para trás. ver tendo-te já na
minha frente, apesar da estreiteza dos caminhos. apesar da
meia-luz, não te enganes, não são flores como as que se veem
por aí nos campos esquecidos ou nos recantos curiosos da cidade,
muito menos nos jarros de ninguém, são mais transmutações
sedosas de um vento exclusivo a bater de um extremo
ao outro de mim – e além mesmo desse eu que está além.
termino sempre dizendo-te: o ser humano não foi feito para
voar, e sim para cair
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tombamos longamente: do fundo findo à desfunda nuvem.
(dois versos de poemas diferente afinal ainda se podem encontrar
por aí, para dizer de quedas e voos que, repara, partilham
do mesmo vento)
*Poemas do livro “tesserato”, Editora Caos & Letras, 2019.