Letícia Pinheiro de Novaes, mais conhecida pelo nome artístico “Letrux”, nasceu no Rio de Janeiro, a 5 de janeiro de 1982. Poeta, cantora, compositora, atriz e escritora, é uma das mais importantes vozes femininas da poesia brasileira contemporânea. Venceu diversos prêmios de música, entre eles o Multishow, de 2017; o de “Melhor Trilha Sonora Original”, no Festival de Cinema de Gramado, em 2010, além de ter sido eleita pela revista Rolling Stones como o 10º melhor disco brasileiro de 2017, com o álbum “Letrux em Noite de Climão”.


motivos

foi sem querer:
o pulo que colocou água dentro do teu ouvido
o quiabo no pote que ficou escondido
num canto da geladeira por quase três meses
a conta de gás caída atrás do móvel da sala
minha língua que deu nos dentes na mesa do bar
sobre seu defeito mais secreto
foi sem querer:
(eu chorando no carro no dia do meu aniversário
procurando uma vaga há quase uma hora
janeiro inferno caos
eu só queria dar um mergulho
mas não tinha vaga
não tinha vaga
estava envelhecendo e não tinha uma vaga white people problems
você chocado com meu descontrole
você me criticando
por tornar um passeio tão maravilhoso num caos
eu chorando passando marcha
e nada de vaga
resolvo desistir
leblon ipanema copacabana
arrisco ir pra urca
invento uma vaga
já esperando a multa
não estamos nos falando
parece que você esqueceu que é meu aniversário e que eu posso
parece que eu esqueci que meu aniversário
não me possibilita de nada
o mar está uma lixeira
estou tão obsediada
que entro assim mesmo
afundo no raso e entre destroços e merdas cariocas
nado até bem longe
até bem fundo
olho pra você na areia
com a mão embaixo d’água posiciono minha
mão e ergo o dedo médio na sua direção
você faz uma carinha suave
como quem pede desculpas físicas ou faciais)
continuo com o dedo em riste pra você embaixo d’água
foi de propósito

com certeza correnteza

já dei mais
agora dou pouco
a conta chega e não consigo
já consegui
já fui boa em 348 dividido por mesa com nove
já fui nobre em brigas destemperadas
já fui razoável em falhas cidadânicas
já fui altruísta como desconhecidos
já fui sã com quem me conduzia ao manicômio
já fui elegante com mulheres competindo
hoje em dia
nem aqui nem na chia
dou conta conta
da trolha
não dou conta da vida a seco
e se num dia viro álcool
no outro tomo um passe
semana que vem tem magnified healing
até lá tiro uma carta de tarô pra saber se devo ir mesmo
sábado combinei lisergia com amigues
na natureza óbvio
mas isso se eu não tiver um sonho ruim
segunda tomo o avião rivotrilizada
mas combinei um reiki e água de coco assim que chegar
e de noite tem três garrafas de vinho com as meninas certamente
já fui melhor em termos de vida
já bati no peito mais forte e gritei que
forever young i wanna be forever young
mas aí a própria música me perguntou
do you really want to live forever?
me curo me engano
me curo me certifico
choro valorfes
morro numa grana
vou pra bahia usar snorkel
passo o mês seguinte com miojo e sardinha
me considero me desperezo
me considero me louco
já dei mais conta da vida
mas sei que um dia o mundo acaba
eu antes claro
e diz que a nestlé já comprou toda a água do mundo
choro e resolvo acumular lágrimas
num tupperware sem tampa correspondente
até lá
vou orquestrando estar viva

brutal

ultimamente
quando eu olho pra tua cara
é como se eu abrisse os olhos embaixo d’água
sei que é bonito, mas não vejo nada nítido
não vejo nada específico
poderia haver uma concha inédita
ou até mesmo um bicho marinho que me ameaçasse
mas tudo é turvo
tudo desfocado
cor bonita sem nitidez

ultimamente
tenho brincado de cegueira
como seria entrar no mar sem enxergar
como seria nunca olhar na tua cara

vou entrando
sentindo a água nos pés
nas pernas
no cu
nas costelas
nos suvacos
no peito
no pescoço

eu cogito abrir os olhos
para não esbarrar em ninguém
mas já estou sendo considerada a nova maluca
de branco de ipanema da tijuca
então insisto na cegueira
até que os ouvidos sejam tapados
até que a gravidade se ocupe da força

e quando eu estou quase ofelizando
eu abro os olhos embaixo d´água
e eis você
tão feio
tão bonito
tão você
ultimamente

arrout

eu fico bêbada no mar
{é como se}
altinha sem gravidade
cambaleio pela areia
meio troncha, meio me achando
se alguém de longe me julga gostosa
e vem checar de perto
logo desiste
tamanho caminhar lombroso
eu reproduzo na saída da água

eu fico bêbada no mar
{é como se}
não falo nada com nada
tenho muita fome
tenho muita sede
movimentos ora lentos
ora espalhafatosos
alcóolicos anônimos

é torpor que chama?

hoje te senti diferente
pensei engraçado
tá diferente
chequei a lua
chequei a fome
chequei até a conta-corrente
mas não era nada disso
de noite já deitados
próximos a embarcar na morte momentânea
com direito aos mistérios que nos contaremos dentro de oito horas
você me diz com voz serelepe
hoje dei um mergulho
me assombro porque você nunca vai nunca
misturo uma pequena inveja de ti
com ciúmes do mar
e antes de dizer que bom e desejar boa noite
lambo tua cara inteira

*Poemas do livro “Tudo que já nadei”, Editora Planeta, 2021.