José Carlos de Queirós Nunes Ribeiro, ou simplesmente Carlos Queiroz, nasceu em Lisboa, Portugal, a 5 de Abril de 1907.  Poeta ligado à segunda geração do modernismo português, foi um dos nomes de destaque da revista Presença, periódico sucessor da Revista Orpheu, idealizada por figuras como Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro e do brasileiro Ronald de Carvalho. Inclusive, por volta de 1927, em uma edição especial da Presença, Queiroz publicou diversas cartas de amor de Pessoa para a sua tia, Ofélia de Queirós, revelando intimidades do tão enigmático poeta. Ainda pouco divulgada, a obra poética de Carlos Queirós, está atualmente editada em 2 livros: “Desaparecido – Breve Tratado de Não Versificação” e  “Epístola aos Vindouros e Outros Poemas”.

Faleceu em Paris, na França, no dia 27 de outubro de 1949.

 

CANÇÃO DO MUNDO PERDIDO

Menino: o teu mundo,
Também já foi meu;
Tão belo e profundo,
Tão perto do céu!

Mas o Tempo veio
E fez-me (tão cedo!)
Acordar, a meio
Do sonho mais ledo.

A chave emprestada,
Quis restituída;
Ou antes: trocada
P’la chave da vida.

Que mundo tristonho,
Agora, é o meu!
Tão pobre de sonho,
Tão longe do céu!

Quem tal o diria?!

O mundo que um dia
Também será teu…

INTERVALO

Sem palavras, sem gestos, sem um esforço,
Que a vida, francamente, nos mereça,
Quantas vezes pendemos a cabeça
E os braços, como ao peso dum remorso!

Interrogamos a memória – e ela
Finge que nada sabe; a consciência,
Também nada nos diz. Feliz ausência!
– Contudo, o tempo, está de sentinela.

Como ovelhas perdidas na montanha,
Que não ouvissem do pastor a avena,
Cismamos em que nada vale a pena…
E esperamos que o novo dia venha.

MARCHA MILITAR

Vai a passar um regimento,
Com a banda à frente, em função.
Tremula a bandeira no vento…
E um estranho contentamento
Agita a multidão.

Os homens sonham gloriosos feitos,
Em terríveis batalhas… E, depois,
Da Pátria, os prêmios prometidos.
As mulheres acalentam nos seus peitos
Um maternal amor pelos heróis,
– Tanto maior, quantos mais feridos…

Mas quem, de toda a multidão,
Revela o oculto pensamento,
São as crianças, que não
Pensam em nada – e vão
Atrás do regimento.

CANÇÃO INOCENTE

Menino: queres ser meu mestre?
– Contigo, tinha tanto que aprender!

A ser casto, sem querer;
A ser bom, sem o saber;
A ser alegre, sem ter
Motivos para o ser.

Menino: queres ser meu mestre?
– Deixa o teu arco aí. Vem-me ensinar

A sorrir e a confiar;
A ter esp’rança e a perdoar;
A esquecer e chorar…

Menino, que brincas no jardim:
– Tu, sim,
Podias ser um mestre para mim!

ABISMO

Não sentes o que eu sinto, embora tentes
Ver claro, ainda, na minh’alma clara.
Também tu és a mesma que eu sonhara
E não posso sentir o que tu sentes.

Se encosto a minha cara à tua cara,
Continuamos, um do outro, ausentes,
Falamos duas línguas diferentes,
Um abismo insondável nos separa.

É inútil rasgarmos outros véus.
Só podia prender-nos, como algemas,
A mútua comunhão no Amor e em Deus,

Se pudesse sofrer os meus problemas
E soubesse de cor os meus poemas,
Por os sentires, como se fossem teus.

MICROCOSMO

Breves, casuais
Estátuas de gelo,
Só temos a mais
A voz e o cabelo.

Por dentro, quem sabe
O que as coisas são?!
– Num átomo cabe
Qualquer ilusão.

LEGENDA

Toda a gente dizia que ele havia
De ser, nesta vida, alguém;
E a mãe ouvia e sorria,
Contente de ser a mãe.

O menino cresceu; é hoje um homem;
E, embora por alguém o tomem,
Quando o vêem passar, dizem: – Coitado!
É um poeta… (um aleijado).

DESAPARECIDO

Sempre que leio nos jornais:
<<De casa de seus pais desapar’ceu…>>
Embora sejam outros os sinais,
Suponho sempre que sou eu.

Eu, verdadeiramente jovem,
Que por caminhos meus e naturais,
Do meu veleiro, que ora os outros movem,
Pudesse ser o próprio arrais.

Eu, que tentasse errado norte;
Vencido, embora, por contrário vento,
Mas desprezasse, consciente e forte,
O porto do arrependimento.

Eu, que pudesse, enfim, ser eu!
– Livre o instinto, em vez de coagido.
<<De casa de seus pais desapar’ceu… >>
Eu, o feliz desapar’cido!

A FÁBRICA QUE EU CANTO

Não sei o que produz, mas é enorme,
É feita de tijolo, cor de fogo,
A fábrica que eu canto.
E à noite, quando está iluminada,
(Naquele bairro soturno, à beira rio),
Parece incendiada,
A fábrica que eu canto.

Trabalha-se de noite, nessa fábrica,
E ninguém se revolta.
De dia, nem se sabe que ela existe:
Fica sombria como todo bairro.
Sombria, fria, triste…
– E ninguém se revolta.

Ah! mas às noite, quando se ilumina
A fábrica que eu canto,
Tem a grandeza duma tempestade!…
É um monstro de fogo, apocalíptico,
Pairando na cidade,
A fábrica que eu canto!

*

O que dizemos,
Ninguém dirá
Como dizemos:
Palavra e gesto
Voz e acento
Calor e ritmo,
É tudo ímpar
É tudo novo
É tudo único.
Somos partículas
Inconfundíveis
Da Eternidade.

*Poemas do livro “Desaparecido – Breve Tratado de Não Versificação”, Edições Ática, 1984.