Mauro Santa Cecília nasceu no Rio de Janeiro em 1962. Poeta, escritor e compositor, entre livros e letras de música, possui grandes sucessos nacionais. É coautor, por exemplo, das canções “Por Você” e “Um Amor pra Recomeçar”, em parceria com Robert Frejat. Foi vencedor do Prêmio Stanislaw Ponte Preta, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, em 1994. Entre 2008 e 2010, trabalhou como cronista do Jornal do Brasil, onde assinou a coluna De Bar em Bar, na Revista Programa.

A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL PELO PRAZER

Agora que você bateu bumbo na minha vida
fazendo retornar o assobio
e inaugurando a demência como prática cotidiana
posso realmente dizer que sei
o que vem a ser uma bola de efeito
é uma alma gêmea que
chega pela tangente
mas atinge o centro da gente
como um raio a uma torre do passado
Nossa intimidade já não admite pré-fixação
nem a divisão entre sujeito e objeto
Quem é quem aqui?
Você é meu pitéu, eu sou o seu pierrô
Eu juro, isso antes nunca me assolou
Nada no mundo é que o nosso riso
Nada é comparável às suas lágrimas
depois de deslizar na cama comigo
Quando Marte e Júpiter se juntam
qualquer futuro vira um cachorro pequinês
e nesse momento o riscado mais sábio
é soltar o pé gelado do freio
degustar o palavreado ordinário
e seguir essa inesgotável sensação de fertilidade

ELVIS PRESLEY CANTOU SEU NOME

Um ano depois
e você faz parte do meu planeta –
em lugar único, de mar antes revolto
Um ano depois
muitos risos, sexo bacana
detalhes ampliados de nós dois
também choro, desencontros
embora poucos
Um ano depois
luz natural no céu do túnel
olho no olho, tudo pela frente
o desafio de revirar
e manter intumescida a chama
de um amor para recomeçar.

CRUEL III

cruel é mentir uma vez e não parar
cruel é saber do filho devagar
cruel é fazer bonito e não vencer
cruel é ver a mãe morrer
cruel é acordar desaparafusado
cruel é pedir a Deus e ao diabo
cruel é desaprender a namorar
cruel é assistir o tempo voar
cruel é falar pensando alto
cruel é falhar na hora do ato
cruel é ouvir sempre o mesmo som
cruel é o desprezo do garçom
cruel é evitar o espelho
cruel é espalhar mau cheiro
cruel é se culpa de tudo
cruel é viver só no futuro
cruel é banhar neném na poça
cruel é tratar mal a moça
cruel é não parar de suar
cruel é não mais respirar

TEMPO AO TEMPO

alguém já disse que
passar a noite acordado
é uma forma de triunfar sobre o tempo
– então sou um vencedor.
outro alguém também disse
que nunca se passa pelo mesmo
rio duas vezes
– está bem, sou um camaleão.
nessa etapa tenho que trabalhar
muito
mas agora eu só penso
em você com um pouco de nescau
– só sei que isso é o que há.

POR VOCÊ

por você, eu limparia os trilhos do metrô
eu iria a pé do Rio a Salvador
por você, eu roubaria uma velhinha
eu dançaria tango no teto da cozinha
por você, eu adoraria a disciplina japonesa
eu aprenderia a fazer cara de surpresa
por você, eu viajaria a prazo pro inferno
eu tomaria banho gelado no inverno
por você, eu hoje deixaria de beber
eu enfrentaria um lutador de caratê
por você, eu ficaria rico em um mês
eu dormiria de meia pra virar burguês
por você, eu só sentiria essa febre
eu conseguiria até ficar alegre
por você, eu viveria em greve de fome
eu mudaria a grafia do meu nome
por você, eu pintaria o céu de vermelho
eu teria mais herdeiros que um coelho
por você, eu aceitaria a vida como ela é
eu desejaria todo dia a mesma mulher.

VOCÊ ME OLHA

Você me olha
e mesmo eu ainda inquieto
sei o que da vida espero
Você me olha em paz
sorrindo e admirando
não o que eu sou
mas o que você vê
com olhos de paixão
Com você me sinto na água
o sexo de novo é muito bom
como andar por aí de mãos dadas

Você me olha em transe
como quem olha uma nova tatuagem
enquanto fabrica mil viagens
eu vou e volto sem ar
Meu corpo
dentro do teu sistema solar

Você me olha em paz

ATÉ O FIM (PARA QUEM NÃO VÊ)

O som por trás do muro
é para quem não vê
A dança na palma da mão
é para quem não vê

Não vê como os outros
acham que deve ser
Não vê como os loucos
vão nos comover

Hoje igual a anteontem
Tudo ficando assim
Cada vez mais escuro
Mas eu vou até o fim

O segredo inviolável
é para quem não vê
O sonho de olhos abertos
é para quem não vê

Não vê como os outros
acham que deve ser
Não vê como o amor
pode se perder

Depois de quantos passos
virá a última canção?
Depois de quantos mal-entendidos
virá o verdadeiro perdão?

Hoje igual a anteontem
Tudo ficando assim
Cada vez mais escuro
Mas eu vou até o fim

*Poemas do livro “olho frenético”, aeroplano editora, 2004.