Luís Delfino dos Santos, assinava seus trabalhos como Luiz Delfino, nasceu em Desterro, Santa Catarina, no dia 25 de agosto de 1834. Poeta, médico e político, é considerado um dos maiores nomes da poesia catarinense, só atrás de Cruz e Sousa. Foi eleito pelos colegas escritores o “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, em 1898. Também foi chamado de “Victor Hugo brasileiro“. Apesar de não ter publicado nenhum livro em vida, sua obra é imensa – escreveu mais de cinco mil poemas – e foi publicada em quatorze livros, por seu filho, Tomás Delfino dos Santos, entre 1926 e 1943. Sua poética vai do romantismo ao parnasianismo, passando pelo simbolismo. Na política, Delfino foi Senador por Santa Catarina no início da República Velha. Faleceu no Rio de Janeiro, no dia 31 de janeiro de 1910
O ideal e o real
Dois universos!… Um, o que dá forma e sonha
Nossa mente; abre, e rasga, e arqueia, e azula, e cria;
E esse outro, em que se inverna, essa cava medonha,
Que guarda uma ilusão de cada extinto dia.
Um é obra gentil da vária fantasia,
Cheirosa, alegre, doce, esplêndida, risonha:
Outro, a fome, a miséria, a lágrima sombria,
Onde escarra a traição a esquálida peçonha.
Quero o primeiro: esta alma ardente, ansiosa, aflita,
Dele, para viver, dele só necessita,
E tem só nele luz, céus, olimpos, que ver.
Quando a taça de fel a angústia humana traga,
Não é pelo ideal, que nos faz rir e embriaga,
É pela luta amarga e austera do dever.
Os grandes anônimos
Esboço rude dos Rembrandts infantes,
Alma que pelos sóis com deuses priva,
Raça frustrada de titãs errantes,
Quem te foi mestre em obra assim tão viva?
Que o ar, a sombra, a luz, em tudo plantes,
Dando ao conjunto estranha perspectiva!…
Assim o poeta às odes deslumbrantes,
Ritmo, e harmonia, e graça, e ardor cativa.
Morangos, figos, pêssegos, amoras,
Maçãs, laranjas, mangas, ananases,
O que é desenho e cor embalde ignoras;
Mestre sublime, com teus frutos fazes
Quadro em que rufa um triunfal de auroras,
E ecoara o hino de pincéis audazes…
Sanguínea
A Alberto de Oliveira
Longe… vasto horizonte retalhado
De serras cor de um glauco-azul, distantes;
Brumas por cima, como véus flutuantes;
Perto… o fragor das músicas do prado.
O acre, o intenso bálsamo exalado
Da mata, onde andam Faunos, como dantes;
Rochedos ideias, e as espumantes
Águas do rio às cristas pendurado.
Um cheiro bom das cousas, que embriaga;
A luz que sobe, sobe, embebe, alaga
O azul enorme; a gárrula manhã,
Correndo a oiro e pérolas as nuvens…
Ora!… Deus plagiando um quadro a Rubens?!…
Quando isto vir, o que dirá Rembrandt?!
Um cinzelador
Há, gentil criatura, um poeta que cinzela
A frase como um velho ourives florentino,
Que torce o oiro, e mistura a prata, e que martela
De um golpe, o vaso iriante, adamascado e fino.
Eu queria-lhe o gênio; amara-lhe o destino;
Lavrara com carícia a estrofe, e punha nela
Asas, sóis, muito aroma, o alarido de um hino,
E o azul… todo esse azul que o infinito apainela.
Para o rico ideal tenho a matéria-prima:
Obedece-me a luz, domestiquei a rima,
Guardo a música presa aos metros rugidores.
Neste trabalho a mão pode bem ser que trema…
Mas se tu queres, se desejas um diadema,
Vais ter em mim já um desses cinzeladores.
Os rebeldes
Tenho ouvido dizer que desde o homem primeiro
Houve o medo de Deus, o Deus bom da Escritura;
E sempre viu-se em todo o tempo a criatura
Ter o terror, que preso, acusa o prisioneiro.
Ante a dor um rebelde uivou um dia inteiro;
Perguntou: – Por que à dor a vida se mistura?
E um audaz Prometeu, grande, como um argueiro,
Foi, e mediu com Deus sua própria estatura.
Como fundo o céu todo, o céu todo e o horizonte…
Assim sondando o espaço, e olhando fronte a fronte,
Deus heróis devem ser, antes de um batalha.
Talvez trema a montanha ao pé de um grão de areia,
Porque se ela ainda agora o enorme dorso alteia,
Pode ser amanhã pó, que o vento ergue e espalha…
*Poemas do livro “Canção do Parnaso”, Caminho de Dentro Edições, 2021.