Cesare Pavese nasceu em Santo Stefano Belbo, na Itália, no dia 9 de setembro de 1908. Poeta e escritor, foi um dos mais ávidos combatentes antifascista em seu país, o que lhe rendeu, além de inúmeras perseguições, três anos de prisão, em Barcaleone (Reggio Calabra). Nessa época, iniciou o diário “O Ofício de Viver” (Il Mestiere di Vivere), uma autocritica revelada em reflexões sobre a sua arte, seus processos criativos e sobre o sentido da existência.

Ainda criança, Pavese mudou-se para Turim. Na cidade começou a acompanhar movimentos artístico e políticos de oposição aos governos fascistas. Sua primeira boa impressão na literatura ocorreu com a sua tese de licenciatura sobre Walt Whitman. Continuaria, ao longo da vida, a publicar estudos sobre literatura norte-americana clássica e contemporânea, reunidos num volume “La letteratura americana e altri saggi”, publicado postumamente em 1951. Traduziu obras de Daniel Defoe (Moll Flanders), Charles Dickens, Herman Melville (Moby Dick e Benito Cereno), James Joyce (Dedalus), Sinclair Lewis, John dos Passos, Gertrude Stein e William Faulkner.

Só a partir da década de 40, Pavese conquistou o reconhecimento internacional, a partir de romances que lhe renderam prêmios, como o “Strega de Literatura”. Em seus mais diversos gêneros, a obra do poeta é marcada por temas sociais, sempre apresentando um cenário entre a cultura rural e a urbana, assim como a relação entre proletariados e a burguesia.

Cesar Pavese cometeu suicídio no dia 26 de agosto de 1950, em Turim, aos 41 anos.

 

Gente que não entende

Sob as árvores de uma estação muitas luzes se acendem.
Gella sabe que agora sua mãe está voltando dos prados,
de avental carregado. À espera do trem,
Gella mira entre o verde e sorri com a ideia
de parar também ela entre os postes, catando a folhagem.

Gella sabe que a mãe quando jovem passou na cidade
uma vez: toda tarde ela parte de lá, ao crepúsculo,
e no trem rememora as vitrinas lustrosas
e as pessoas que passam e não olham nos olhos.
A cidade da mãe é um pátio fechado
entre muros, com gente a espreitar no balcões.
Gella volta de noite com olhos absortos
de desejos e cores e, alheia ao vagão,
pensa, ao ritmo monótono, nítidos traços de ruas
entre as luzes, colinas cortadas por vias e vida
e alegria de jovens de andar decidido e sorriso seguro.

Gella odeia essas idas e vindas, voltar toda tarde
sem estar nem no meio das casas nem entre os vinhedos.
Ela quer a cidade naquelas colinas,
luminosa, secreta, e não mais se mexer.
Como está, tudo é estranho. De noite revê
os irmãos, que retornam descalços de algum afazer,
e sua mãe bronzeada, e se fala de terra
e ela senta em silêncio. Mas inda recorda
que, na infância, ela vinha também com seu feixe de plantas:
mas então eram só brincadeiras. E a mãe, que transpira
recolhendo a folhagem, porque toda tarde
a recolhe há trinta anos, podia uma vez
descansar em sua casa. Ninguém notaria.

Também Gella queria ficar solitária nos prados
e alcançar os mais ermos, talvez se embrenhando nos bosques.
Esperar pela noite e sujar-se no mato
ou quem sabe na lama e jamais retornar à cidade.
Fazer nada, porque não há nada que sirva a ninguém.
Como fazem as cabras, puxar simplesmente as ervinhas mais verdes
impregnando os cabelos suados e quentes
de rocio noturno. Enrijar bem as carne
e queimá-las, rasgando o vestido – assim na cidade
já não vão desejá-la. Está farta das idas e vindas
e sorri com a ideia de entrar na cidade
descomposta e desfeita. E enquanto as colinas e vinhas
não tiverem sumido, e puder passear
pelas ruas, à noite, sorrido, onde havia as campinas,
Gella vai ansiar quando olhar pelo trem.

Paisagem VII

Basta um pouco de dia nos olhos claros
como o fundo de uma água, e a raiva invade,
a aspereza do fundo que o sol lamina.
A manhã que retorna e a encontra viva
não é tênue nem boa: perscruta-a fixa
entre as casas de pedra que o céu encerra.

Sai o corpo pequeno entre a sombra e o sol
como um lento animal, espreitando ao redor,
sem olhar para nada a não ser as cores.
Sombras vagas que vestem a estrada e o corpo
escurecem-lhe os olhos, meio entreabertos
como uma água, e nessa água transluz a sombra.

Os matizes refletem o céu tranquilo.
Mesmo o passo que pisa o lajedo, suave,
quase pisa nas coisas, como o sorriso
que as ignora e perpassa como água clara.
Dentro d’água ameaças furtivas escorrem.
Cada coisa do dia se crispa à ideia
de que a rua, sem ela, seria um vazio.

Agonia

Girarei pelas ruas até desabar de cansaço
saberei viver só e mirar bem nos olhos
cada rosto que passa e manter-me serena.
O frescor que se eleva buscando-me as veias
é um real despertar que eu jamais pressentira
nas manhãs: simplesmente me sinto mais forte
que meu corpo, e um tremor mais gelado acompanha a manhã.

Longe vão as manhãs em que eu tinha vinte anos.
E amanhã, vinte e um: amanhã sairei pelas ruas,
recordando suas pedras e nesgas de céu.
A partir de amanhã me verão outra vez
passeando aprumada, podendo parar
nas vitrinas e olhar-me. As manhãs do passado
eram de juventude e eu não via, nem mesmo sabia
que era eu mesma que andava – senhora de si
e mulher. A menina magrinha que eu fui
acordou de um choro arrastado por anos:
hoje é como se o choro jamais existisse.

E desejo somente essas cores. As cores não chora,
são como um despertar: amanhã essas cores
voltarão. Cada qual vai sair pela rua,
cada corpo uma cor – inclusive as crianças.
Este corpo vestido de um leve vermelho
após tanto palor voltará a estar vivo.
Sentirei ao redor deslizarem olhares,
saberei que sou eu: num relance de olhos,
me verei entre a gente. E nas novas manhãs,
sairei pelas ruas em busca de cores.

Manhã

A janela entreaberta contém um rosto
sobre o campo do mar. Os cabelos vagos
acompanham o terno balanço do mar.

Já não há mais lembranças sobre este rosto.
Só uma sombra fugaz, como fosse uma nuvem.
Sombra úmida e doce como a areia
de uma intacta caverna, sob o crepúsculo.
Já não há mais lembranças. Resta um sussurro
que é a voz desse mar tornada lembrança.

No crepúsculo a água mole da aurora
que se banha de luz resplandece a face.
Cada dia é um milagre sem tempo
sob o sol: uma luz salgada o recobre
com um gosto de fruto marinho vivo.

Não existe lembrança sobre este rosto.
Não existe palavra que o contenha
ou disponha entre as coisas passadas. Ontem,
dessa breve janela sumiu-se como
sumirá num instante, sem mais tristeza
ou palavra humana, do campo do mar.

Revelação

O homem só reencontra o rapaz mirrado
peito absorto a espreitar a mulher sorridente.
O rapaz levantava a mirada aos dois olhos
onde os ágeis olhares tremiam sem pejo,
diferentes. Nos olhos o rapaz recolhia
um segredo, velado como o colo encoberto.

O homem só se comprime no peito a lembrança.
Os anônimos olhos lhe ardiam a carne,
vivos de úmida vida. A doçura do colo
que pulsava de quente ansiedade se via
nesses olhos. Brotava agitado o segredo
como um sangue. Terríveis surgiam as coisas
sob a calma clareza do céu e das plantas.

O rapaz soluçava na noite suave
raras lágrimas mudas, como aquelas de um homem.
O homem só reencontra no céu que se afasta
a mirada discreta que a mulher oferece
ao rapaz. E revê recompor-se nos olhos
e na face serena o sorriso de sempre.

*Poemas do livro “trabalhar cansa”, Companhia das Letras, 2022.
Tradução de Maurício Santana Dias.