Margarida Vale de Gato nasceu em Vendas Novas, Portugal, no ano de 1973. É poeta, tradutora e Professora de Estudos Americanos e Tradução Literária na Faculdade de Filosofia da Universidade de Lisboa. Enquanto tradutora, já transpôs para português diversos textos ingleses e franceses do cânone literário de autores como Henry Michaux, Nathalie Sarraute, René Char, Edgar Allan Poe, Herman Melville, Charles Dickens, Alice Munro, etc. Em relação à sua obra poética, é autora dos livros de poesia Mulher ao Mar (Mariposa Azual, 2010, 2013) e Lançamento (Douda Correria, 2016), e Atirar para o torto (Macondo, 2021).

FACHADA

Tantas vezes tolhe a pele o respeito aos maiores.
Tinha vinte e cinco anos no sessenta e oito –
o mesmo número da porta onde no patamar
as esporas do pai e a janela cosida
por um cristo redondo. Diria:
Estou sentado virado para a parede desta casa
diria: baixo, mais baixo ainda, aguarda mais

aguardar nada, a prece
uma caução para vedar o pânico –
um tapume a rechaçar a avenida
e tantos indomináveis obstáculos
para o norte, o mar, pernambuco, as formas
opulentas do amor extremo, o inexplicável
volte-face do atropelo, a carroça

da tragédia, o destino órfão enfermo.
Entalar pois a porta ao mundo, povoar
a casa de quanto de alto e fundo
como centopeia amputada
contra o corpo couraça de chagas
infinitas: a casa ermida peregrina
encenada à altura de uma vida.

CARTA AO ACÉRRIMO POETA

leitor canalha mano semelhante
embora mal perguntes, que é feito?
minha embirração estimável, escrever
ainda é duelo sério? mandar
àquela parte ainda é esticar a língua
sem cálculo nisso, só por ver passar
o incêndio, ficar chupando a chuva
ou dar a boca ao sol como berlinde

e vão ainda as mãos com os foguetes
pelos estalinhos? até pelo festim
da pólvora, que expludas sem melindre,
pavio rasteiros, mesquinha desforra.
Se vais a jogo que seja pela firmeza
do músculo, puxando atrás a fisga
contra a beleza e virem as palavras
como copos derrubados, ritmo risco

no tempo, finta à baliza do tempo.
Aqui a inveja pura é um defeito
que me assiste, mas a tua coragem
sozinha, de que vale, se fica só
pela garganta e a espinha? Nisso, sei
me tolhe julgar-te lorpa, me faz
soberba, matrona, não me importa
sequer tanto o que pensas de mim

consultando terceiros: ainda te quero
bem, na senda antiga da leveza
resistente ao terreiro barulhento.
Mas se não te rendes de que vale
zurzir, ó bravura de bordoada!
se apontar o torto veda o espanto
silencioso, o embargo das lágrimas.
Se um indivíduo apenas se arma

(conquanto admire o desdém do moço
que cospe no banquete filantropo)
que serve a zaragata ao universo?
Os colhões de que prestam se for só
para os ter no sítio, se não for para
a cópula, o combate se não for
para a revolução – a qual bem feita
chamará outros ao nosso ataque.

ATIRAR PARA O TORTO

Quando eu nasci a última guerra mundial tinha sido há vinte e oito anos
a colonial ainda tinha minas
a minha idade já é o dobro desse tempo nesta paz
sinceramente agradeço mas as coisas não convencem
como a tosse sempre na garganta o escorrega acentuado
da esperança e viver como julho temporão quando passou
já o dia mais longo custa trabalhar o vento tem grão a lua
zomba amarela cada hora mais matrona as melgas rondam todas
as atividades parecem besuntadas de creme contra
a exposição solar as picadas do peixe-agulha a comichão
da caravela portuguesa não é a sabedoria que se ganha
a ternura que se conquista uma ova é esta película
de gordura entre nós e o mundo os tornozelos
inchados no lodo do mar morto
a sabedoria aliás não tem nada que a recomende

eu que o diga que fiz estudos
ganhei uma cadeira de armar à sombra da academia
e quando o rei faz anos espremo as tetas
da poesia de cada vez o leite é mais ralo
o soro nem vê-lo de resto dane-se para quê
a inoculação? já agora o direito internacional que nos vale
as costas direitas para dizermos que não cabem
não há cais nem margem não há cá piedade
que chegue para os povos das partes baixas do mapa
felás infantis logo querulentos garotos famélicos
grávidas desidratadas gentes que nos olha
por cima da burra com pragas e mil vícios
isso não é bonito

vem com o pacote agora desembrulhe-se
tanta húbris esta bílis se calhar é o valor fiduciário
sei lá eu sou das letras tudo passa
sem os meus palpites a minha pieguice pouco faz
em justiça nem sequer dá alívio o que eu devia
não era reclamar era convocar o imoderado dilúvio
quando não a fé da indecorosa juventude
inundada cheia que valha nos esparza
nos capitule
sei lá eu fácil saída fraco remédio
para a catástrofe
unguento inócuo da nossa dor
se calhar faz parte do problema
o obstinado pejo de que no poema se cante
um exultante afogamento

DE SE FAZER PARA QUE TUDO ARDA

Vi rutilar cada grés do tijolo
burro do amor e vi dilapidar
cada escama ao corpo refletor
e sôfrego de ar, pulsando tolo

a puxar fio em vez de afrouxar
o travo, o isco, o peito louco arco (
os pés fincados contra a derrocada
em vez de a coluna se vergar

e juntar no chão o ruído sonho)
de muito alto, retesado, logo
atrás do estilhaço do abandono

servindo o incêndio não cuidamos
de destroncar excessos, terminamos
cada um a seu campo só um fogo.

A VER SE DESTA ACABO TEU PRAZER

escrevo-o porque é o mais difícil
de fazer sem ti, que foste corpo
boia às minhas mãos, bordão torto
mas para vir à terra o mais fiel

ferro. E seu eu na pele ne soube
do mal que me avisaram que me fazes
e já sou mestra em largar-te quase
tantos como a Plath a gritar lobo

até morrer de fato, eis o tributo
ao que passámos: rumores de noites,
copos, cafés, suspensões de céus

e sol manchado após o mar ou coito
e o pasmo sobretudo libertado
do vazio – que triste, cigarro, adeus.

*Poemas do livro “Atirar para o torto”, Edições Macondo, 2021.