Mariana Godoy nasceu na cidade de Pacaembu, interior de São Paulo, em 1996. Poeta, atriz e pesquisadora da educação, seu livro de estreia foi “O afogamento de Virginia Woolf” ,  em 2019. Depois lançou “Trasgo nas masmorras”, em 2021 e “Holograma”, em 2023.

área de atuação

a cada da infância ficava em uma rua íngreme
que eu sabia e descia correndo
para ser levantada no ar pelos braços do meu pai
uma brincadeira que acabou quando tropecei
e precisei levar três pontos no queixo

quem foi que colocou esse médicos entre nós?

lembro a minha mãe da cena
e descubro que não era uma brincadeira minha
com o meu pai
mais uma brincadeira da minha prima
com o meu tio
que eu nunca levei três pontos no queixo
enquanto a prima carrega uma leve cicatriz

é o que normalmente acontece aos tradutores
que trabalham no campo da memória

essa é a imagem

a mãe levante o bambu
e desenha uma linha tensa
no alto
depois olha o território o céu tecido na horizontal
e proclama
então
a independência dessa casa

dois é bom

existe um sentimento que só os últimos conhecem
os últimos
são aqueles que olham para os seus companheiros
e sabem com uma certeza ancestral que são os últimos
que não haverá outro ou outra em seguida
que você é o destino de quem te beija
e quem te beija é o seu destino
porque não há ninguém lá fora esperando
porque não há ninguém a ser encontrado
porque
são só os dois e esse número infinito
caindo sobre a cama todas as manhãs

fósseis

não é nessa mesa que você almoçava com a sua mãe
não é nessa mesa que ela tirava os espinhos dos peixes
e entregava a carne limpa
na época
você não era boa em manobrar as lascas pontiagudas com a língua
hoje
é você quem separa os espinhos no canto do prato
e inspeciona cada pedaço do peixe para a sua filha
perceba
a mesa embora outra segue as curvas do mesmo rio

cama de gato

quando na escola perguntavam
quem eu amava mais
a minha mãe ou o meu pai
eu sempre mostrava o amor
pela distância entre as palmas
a minha mãe eu amo um tanto assim
o meu pai eu amo um tanto assim
sem perceber
que tudo aquilo que ficava entre uma mão e outra
era nada

*Poemas do livro “Holograma”, editora Círculo de Fogo, 2023.