Sylvio Fraga nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1986. Poeta, músico e compositor, é Mestre em poesia pela New York University. Dirigiu o Museu Antônio Parreiras, em Niterói. Autor dos livros Entre árvores (selecionado por Armando Freitas Filho para a editora Bem-Te-Vi, 2011), Cardume (7 Letras, 2015, considerado por Antonio Cicero “um dos melhores livros de poesia contemporânea”) e Quero-Quero na Várzea (Todavia, 2022), organizador e tradutor da coletânea O andar ao lado: três novos poetas norte americanos (7 Letras, 2012).
Entardecer da madrugada
Deve ser difícil
chorar assim sem consolo
sem entender ainda
o que é um beijo.
O que acontece?
É uma tarde que tomba suavemente
em nossos corações?
Haverá sempre um sentimento novo
que nos atravessa
como uma fome atravessa a cidade
na barriga do cachorro.
O manacá-da-serra, por exemplo,
guarda infinitos rosa
entre seu branco e roxo.
Prometo não ficar tão frustrado
na aventura da noite.
Juro por cada elefante
no seu pijama.
Biologia do amor
Panda e eu vivemos uma relação
de verdadeira simbiose.
Eu lhe dou comida,
ela me avisa se há perigo:
um cão na esquina,
gambá na fiação.
Nunca errou, por exemplo,
se veio alguém com energia estranha.
Arrepiada ela cerca a visita
até que vá embora.
Amor não tem nada a ver com simbiose,
que é utilitária.
Mas pode nascer daí,
sem problema algum.
Habitat
Uma mulher canta na noite do bairro,
é terrível e ficamos impacientes.
Mas ela está se expressando na noite,
que é quando as pessoas não têm muito onde se agarrar.
Não se pode dizer: cale a boca!
Especialmente no verão, quando o bafo da terra sobe
e alaga seu apartamento.
Zumbidos de silêncio urbano crescem num bolo de estagnação,
não tem gosto mas vai te engordando
de não sei o quê.
O ar basta mas não sacia.
Ando pela sala embalando meu filho
pois sou a embarcação peluda entre o útero e a vida.
Azul resiste no céu em despedida arrastada.
A casa deita esfriando, feito uma carne.
Sombra azul do ipê-amarelo
Ela dorme
mas o bebê e eu estamos acordadíssimos
eu aqui fora
ele lá dentro
é como estar com uma árvore
deito aqui à sua sombra
ouço seus frutos caindo na brisa
mas não são de comer
quer dizer
macaco-prego e maritaca comem
dispersando sementes
pelo meu sonho
reflorestando algumas regiões
Paisagem da paisagem
Meu filho flutua, às vezes leva um susto
abrindo os braços para evitar o pior.
É apenas o reflexo?
A recordação da porta que bateu no vento?
Mesmo dormindo seu olhar salta vales e riachos.
Braço pendurado, boca entreaberta,
uma gota transparente.
Ele sonha simples.
É como examinar as fezes da raposa.
Remonta-se o esqueleto do sapo, do camundongo,
plantam-se as sementes da framboesa selvagem.
*Poemas do livro “Quero-Quero na Várzea”, Editora Todavia, 2022.