Armando Martins de Freitas Filho nasceu a 18 de fevereiro de 1940, no Rio de Janeiro. Poeta ligado ao movimento pós-modernista, fez parte da geração que ficou conhecida como “marginal”, ao lado de nomes como Ana Cristina Cesar, Alice Ruiz e Paulo Leminski, nas décadas de 70 e 80. Com uma obra inquieta, buscando sempre os detalhes cotidianos que passam imperceptíveis aos olhos não-poéticos, ele trabalha a estética de seus poemas criando formas e apresentações originais, abusando do experimentalismo. Seus temas mais constantes perpassam pela essência humana diante o mundo externo, suas ações e consequências, e interpretações distintas às obviedades pré-determinadas da vida. Muito premiado, venceu o Jabuti de Poesia, em 1986, e duas vezes o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, em 2000 e 2014.

Sentenças

Esta lembrança toda feita de lanças
cravada, em uníssono, no alvo do corpo.

Estas vozes, tão mudas, que calam
aqui dentro, qualquer esforço meu.

Este novelo de avessos no começo
de mim, com seu fio de silêncio.

Este sol que busca a janela da manhã
que não se abre no casarão da noite.

Esta ferida que escreve e repete
com sangue, meu nome, e se derrama.

Este céu fundo de esmalte, azul e vão
sem vitrais, sem as cortinas do vento.

Este lugar vazio que me habita e veste
com suas roupas de sombra e rasgão.

Esta vida espessa abandonada no espaço
que não se resolve, dissolve-se e passa.

Soneto

O sexo imprime no corpo
a velocidade de outro corpo:
camaleão partindo em silêncio
leão de bronze, flagelo

roendo a praia de carne:
unha e garra quando onda
doem na areia, pele adentro
rosto sem pausa no vento.

Abismo de louça escavado
fracionado pelo espasmo
o leite rosna abafado

Sono ou sonho decepado?
Vácuo, estalo, resvalo
longe de mim, fraturado.

Ciclo

O vento desvenda
senda noturna
despertando semente
que engendra
ritmo de ar
semovente
linha turva
curva em sombra
volteio no espaço
enleio
luz, repente
fruto
fruto crescente
— dente —
semente.

Casa

A casa torta
escura e morta
é coisa virando no espaço
(sem espaço).

A casa enorme guarda:
furor de pedra escondida
parede em súbita subida
degrau embolado no escuro
salto de muro sem furo
corpo retido no corpo
desmaio de roupa vazia
olho aberto-fechado
bicho peludo deitado
toque encolhido na mão
pé cortado no chão
contato tecendo rochedo
imóveis móveis sem som.

Corpo

Acrobata enredado
em clausura de pele
sem nenhuma ruptura
para onde me leva
sua estrutura?

Doce máquina
com engrenagem de músculo
suspiro e rangido
o espaço devora
seu movimento
(braços e pernas
sem explosão)

Engenho da febre
sono e lembrança
que arma
e desarma minha morte
em armadura de treva.

Fotografia

Não amava o amor. Nem as suas provas.
Amava a sua engrenagem. A urdidura
do palco, o holofote cego
com a possibilidade de luz.
A cortina caindo em pano rápido
na boca de cena, sob o coração imaginário
artificial e monitorado, diverso
daquele que batia dentro de si:
sem controle — na bela e na fera.

Sobre uma foto de Ana C.

O verbo colear cabe aqui, justo
em todas as suas flexões, e cola
exato, no músculo puro e nu
que se movimenta assim, escaldante
na velocidade de cobra ou de mercúrio:
de zero a cem, cobre o espaço do corpo
sem sentir a força da aceleração
nem a volta, serpentina, à inércia
do anel inicial. Nos dois estágios
cai como uma luva, veste-se somente
de si, com sua pele mais fina e final.

*Poemas do livro “Máquina de escrever – Poesia reunida”, Editora Nova Fronteira, 2003.