Maria Beatriz Nascimento nasceu em Aracaju, Sergipe, no dia 12 de julho de 1942. Poeta, historiadora, professora, roteirista e ativista pelos direitos humanos de negros e mulheres brasileiras, tornou-se voz influente nos estudos das relações raciais no país. O seu trabalho de maior reconhecimento foi o documentário “Ori” (1989), dirigido pela socióloga e cineasta Raquel Gerber. Em relação à poesia, suas obras mantém o olhar sobre a corporeidade do negro; a perda da imagem que atingia africanas e africanos escravizados e seus descendentes em diáspora, e a situação das mulheres negras no Brasil.

Maria Beatriz Nascimento faleceu no dia 28 de janeiro de 1995, no Rio de Janeiro, assassinada por seu então companheiro, Antônio Jorge Amorim Viana. Vítima de inúmeras agressões físicas e verbais, após uma nova discussão, a poeta levou cinco tiros e não resistiu. Antônio, que era reincidente, foi preso e condenado a 17 anos de prisão. Beatriz Nascimento tinha 52 anos e uma filha.


Insegurança

[A Drummond, 23.01.1988]

Nasci segura em rede esticada
Em praia de claras águas
Em ventre bom e gostoso de poderosa mulher
No caminho topei com a primeira pedra
Grito de terror diante da luz
Senti-me insegura, primeira expressão de náusea
Nasci segura em mãos experientes
Entre sábias mulheres com muita atenção
Coisa viva, animada
No caminho topei com a segunda pedra
Grito de terror diante da treva
Senti-me insegura, o primeiro vômito
Nasci segura entre corações amorosos
Leite, doce, pão e mel em abundância
No caminho topei a terceira pedra
Grito de terror diante de ser
Senti-me insegura, a primeira insônia
Anúncio de ser mulher.

Inusitado
[A Oxumaré, 01.09.1987]

Antes tudo acontecesse como antes aconteceu
Não vindo como algo novo
Seduzindo o que não estava atento
Antes tudo acontecesse como o aviso do sinal
Atenção! “Está prestes a se concretizar”
E não como serpente silenciosa
Em seu silvar
Antes tudo acontecesse quando te sentisses forte
Capaz de reagir, que pudesses sangrar
Antes tudo acontecesse como se fosse o previsto
Visto de trás ou de longe
Antes que te atingisses de frente
Antes tudo acontecesse como acontecem as histórias
De encontros e rompimentos, num mergulho sem demora
Antes tudo se passasse como passa o Arco-íris
Num momento luz, noutro bruma e crepúsculo

Ilha de Vera Cruz (Primeiro Nome)
[11.1986]

Eu acredito nele, pois de seu território eu faço parte
Eu tenho fé nele: porque nesta leitura só ele existe e é meu (país)
Eu tenho esperança nele porque conheço sua história,
que em meus anseios será eterna
País de macunaíma e caipora
País receptáculo do mito dos “setes pares”
Seja ou não seja de França
Amo-o por ser ele mesmo o muirakitã, símbolo
da origem da vida que da água transformou-se em terral
Amo-o por suas contribuições, torrão onde dorme
Um gigante, que pó si só determina a saga
de um povo anão, como o são todos os homens
“Por onde for quero ser seu par”
Quero-o livre e forte
De sul até o norte

Os homens da minha rua
[19.05.1991]

Hoje encontrei-os ratos, Anjos
Suores em negação
O baleiro menino-homen
Meninos-homens em sobrevivência
Agressão submissão do nordestino do bar
O presente, presente-passado Gonzagueiro
Da revista, da almofada, o forró
Da cantoria nordestina
Da sabedoria vulgar
Popular, da loucura muito nossa
Das emoções, da viagem até a Baixada
Dos desejos explodidos
Sem lugar para deixar… em Copa
Somente seguir
Sem sentir o sucesso determinado
Isso pertence aos eleitos…
Dos deuses, do Universo.
Corpos rolando ao cosmo.
Na mais-que-perfeita brasilidade

Quero escrever um conto
[1984]

Quero escrever um conto. Pode ser um conto-de-fadas, um conto-do-vigário, um conto erótico.
Quero escrever um conto, um conto de amor e de vida.
Quero dizer de felicidades. Alguma coisa que seja ela mesma
Assim como um sentido em atuação: ouvidos, olhos e bocas
Quero escrever um conto de amor.
Um conto verdadeiro, com eletricidade de ser.
Quero um conto, um canto, um ponto na trajetória do devenir
Para um futuro mais belo.
Futuro que vislumbro na cor dourada do sol da janela dos Arquivos
Arquivo casa onde eu morei e que em mim mora.
Quero escrever um conto ao silêncio dos documentos.

Antirracismo
[06.02.1990]

Ninguém fará eu perder a ternura
Como se os quatro besouros
Geração da geração
Gestação da liberdade
Voo de garça, seguro
Ninguém fará eu perder a doçura
Seiva de palma, plasma de coco
Pêndulo em extensão
Em extensivo mar – aberto
Cavala escamada em leito de areia
Ninguém me fará racista
Haste seca putrificada
Sem veias, sem sangue quente
Sem ritmo, de corpo, dura?
Jamais fará que em mim exista
Câncer tão dilacerado

*Poemas retirados do livro “Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento”, Editora Ogum’s Toques Negros, 2015.