Juan Gelman nasceu em Buenos Aires, Argentina, a 3 de maio de 1930. Poeta, jornalista e tradutor, é um dos nomes mais importantes da poesia argentina do Século XX. Vencedor do Prêmio Cervantes, em 2007, trabalhou a essência de sua obra a partir de um incessante busca por uma linguagem transcendente, tanto pelo “realismo crítico”, como pela intimidade confessional, para abordar suas perspectivas do mundo ao redor das memórias que a história nos enreda cotidianamente. Juan Gelman faleceu na Cidade do México, no dia 14 de janeiro de 2014.

O SOL

em teus braços conheço
minha escuridão/só de ti
conheço o sol/ou abrigo de teus braços/
tua transparência/o olho
que se abre um instante e se fecha
como guardando tua bondade/tua lei/
caminho para
teus braços/ou deleite
pelo qual vai minha boca para a tua saliva/
em ti/fora de ti

AS TESTEMUNHAS

disseram à jovem do cabelo que beija suas bochechas
“como pode o meio-dia de ouro beijar a alba rosada?”/
“vão e belo/desilude a ilusão”/ela disse/
mas não estava falando dela/
suas bochechas não mentem/declaram
que os ato de Deus são insondáveis/

A MÃO

teu coração/ou doce aviso/
cidade de separados/palavra
que não pronunciarás/silêncio
de tua bondade/auxílio
contra a ira que consome
este pauzinho/este baixar o pó/
sem subir para a tua graça/
este fogo que arde em teu resplendor
e não sabe se limpar/assemelhar-se
ao teu vosear em mim/não estejas longe/
custodia minha inocência/minha águas muitas/
o pudor dos meus ossos/
a insolência/ou desgraça/
do mundo coração/

A PORTA

abre a porta/amor meu /
levanta/abre a porta/
tenho a alma colada ao paladar
tremendo de terror/

o javali do monte me pisoteou/
o asno selvagem me perseguiu/
nesta meia-noite do exílio
até eu sou uma besta/

NA PRISÃO

caíram meus anéis/não meus dedos/
meu esplendor não é feito de jóias/
tenho minha fé/minha dignidade
minha alma que brilha/o nome
com que meu pai se nomeou/já ouço
cantar na prisão/uma voz
que talvez seja de pombo ou andorinho/
pede que passarinhas voem
até a janela da amante/e
deixem ali a luz do torturado/
devolvam à amada a imagem
dela/que é vida nele/está intocada/
nenhum ferro pode queimá-la/
o carcereiro não pode quebrá-la/
com sede/com fome/o prisioneiro
bebe em suas lágrimas a amada/
sais de tua ternura/
come noites de amor que arderam ainda/
o desafortunado se esconde
as noites do calabouço como
pássaro inoportuno/
soam os dentes das ratazanas/
as pulgas/outras bestas sem rosto/
assediam-lhe corpo e alma/ele
pensa no tempo/vê
a palavra talvez/
a palavra amanhã/
sob outro sol/o sol/

QUANDO

quando a morte te fizer prisioneiro/
tua casa/de que te servirá?/
ainda que seja feita de tijolos/
de que te servirá?/
teus tios/teus irmãos/tua mulher/
de que te servirão?/
morrerás/eles
te oferecerão um cântaro (rachado)/uma esteirazinha (rasgada)/o sudário/
te deixarão no campo crematório/
e terás morrido/suas lágrimas
logo se secarão/
não perderão o apetite/
não te esqueças disso quando estiveres lá embaixo
respondendo o notário da Morte/
falarás/desnudo agora?/
nem bens nem parentes te servirão/
eles
não te acompanharão/
a quem pertences?/
quando te fundires com a última pureza
tampouco o saberás/
coração obstinado: finges que não entendes/
ainda que mil vezes tenhas perseguido
as pegadas do poema na água/

A FÊNIX

fui soberbo/acreditei
que eras uma página em branco
como tua alma/confundi
tua bondade com candor/teu candor
com desvio do mundo/escrevi
linhas equivocadas/palavras/
na noite obsedada de mim/mas não
fui olhos para o cego/pés para o coxo
me acreditava revestido de justiça/pensava
“perecerei em meu ninho e como a fênix
redobrarei meus dias”/mas fui
insensato e grosseiro/errei
meu caminho rumo a ti/
quebrado o muro/forçada a porta/
as aflições se precipitaram sobre mim/
aferram-se em mim/que já sou nada/
partiste como o vento/tu/o que mais amei/
meus ossos/linhagem
do pó e a cinza/
clamam por ti e não me ouves/
estou em tua presença e não me vês/
dirijo meus passos rumo a ti/
pactuo não te ver com minha vista/
e tenho um só paradeiro: a morte/

*Poemas do livro “Com/posições”, Editora Crisálida, 2007.
Tradução de Andityas Soares de Moura