Helder Moura Pereira nasceu em Setúbal, a 7 de janeiro de 1949. Poeta, tradutor e professor no Ensino Secundário e Assistente da Faculdade de Letras de Lisboa (Departamento de Estudos Anglo-Americanos), ingressou no Ministério da Educação em 1986, tendo exercido funções técnicas na área da educação de adultos, nomeadamente em animação de leitura e nos grupos de planeamento e redação da revista “Forma” e do jornal “Viva Voz”. Foi técnico superior do Ministério da Justiça, em funções no Estabelecimento Prisional de Lisboa.
O seu trabalho poético tem vindo a ser publicado regularmente pela Assírio & Alvim, obtendo o reconhecimento do público e da crítica. É disso exemplo a atribuição de diversos prémios literários, entre eles o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava e o Prémio de Literatura Casa da América Latina/Banif, este último pela sua tradução do livro “O Inútil da Família”, de Jorge Edwards. Como tradutor, traduziu obras de Ernest Hemingway, Jorge Luis Borges, Sylvia Plath, Charles and Mary Lamb, Sade, Guy Debord.
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Sempre me irritou a palavra
natureza, mas agora então, passados
tantos anos, quando a oiço já nem é
uma palavra, é um rumor, é o rumor
de uma onda a afastar-se, pode
trazer entoação, se for fuga à definição,
pode trazer só um sussurro, se for
lamento, raiva dominada, vício.
Na tua natureza não estava partires
ao meu encontro e por isso é que eu
lido com fantasmas no ar e oiço
o murmúrio de uma palavra antiga.
*
Foi excitante percebemos qual a cor
da nossa bandeira branca. Enrolamo-nos
nela como dois militantes entusiastas
pela mesma causa, já tínhamos passado
por muita coisa e abraçávamos o resto
das nossas vidas como se fosse uma causa.
*
Abre a boca e fecha os olhos.
Podes saborear, não podes ver,
está tudo visto demais, é lá de cima
que vem a chuva, é lá em cima
que está o céu, e o sol, e as nuvens,
e é por cima de nós que andam
os pássaros. Invadimos, sim,
os ares, será culpa, será ainda
espanto isto de olharmos
para o céu quando passa um avião?
*
Acendia os cigarros uns nos outros.
Dedos negros, dedos que já foram
brancos. Tudo como se não fizesse mal
e os dedos negros seduzissem tanto
como outrora os dedos brancos
e esguios, finos, os ossos por baixo
sem a crueza de um mapa do corpo,
mas um pouco mais cheios, com
uma fina capa de pele nem baça
nem translúcida. Fico doido só
por me lembrar como esses dedos
me tocavam as linhas da testa.
*
Meu Deus, o que as pessoas guardam.
Transportam a memória das casas,
dizem que não querem mas transportam
a memória das casas. Imagens de coisas
concretas, sim, mas também muitas
coisas concretas. Sapatos que já não
se calçam, casacos que já não se põem.
Música que ouviram pouco, porque
pode ser que haja, enfim, tempo.
E música que ouviram muito, porque
sabe bem ouvir a música que ouviram
muito. Resmas de papel antigo, porque
qualquer vida dá um romance.
*
Lembro-me bem desse dia, porque foi
um dia igual aos outros. A parte
da vida que se passa de dia, com tudo
no seu lugar, tudo claro ou escuro, até
as pedras claras dos passeios brilham
sujas de sombras, vozes que entram
por um ouvido e saem por outro.
E as noites, as noites, desses dias?
As noites são absolutamente terríveis,
devem ser, porque acordo com uma cara
cheia de sinais de raiva, muita coisa
se deve ter passado durante a noite.
Quando me vejo ao espelho, que horror,
vejo uma cara que passava muito bem
por ser capaz de fazer mal a uma mosca.
*Poemas do livro “Golpe de Teatro”, Assírio & Alvim, 2016.