Natércia Ribeiro de Oliveira Freire nasceu em Benavente, Portugal, no dia 28 de outubro de 1919. Poeta, escritora e professora primária, publicou muitos livros entre poesia, contos e prosas. Um dos nomes mais importantes da entre as poetas de sua época, venceu prêmios importantes no país, como Prêmio Antero de Quental, em 1947 e 1952, o Prêmio Ricardo Malheiros, em 1955, e o Prêmio Nacional de Poesia, ex aequo com David Mourão Ferreira, em 1971. Natércia Freire faleceu no dia 17 de dezembro de 2004, em Lisboa.
FASCÍNIO
Ia tão clara,
que não via a noite.
Ia tão branca,
que a beijou o incêndio.
O arco em brasa
do violino a leva,
por cais e festas,
à vigília e à treva
de noites e segredos…
O fascínio do som
corria a vida.
As débeis veias
e os silêncios todos.
Tinha braços de amor,
lábios de fumo
e sortilégios a dormir nos lodos.
Sobre o leito, no escuro,
ao seu ouvido,
tecia teias tais,
que eram de rosas
os vestidos dela
e os santos da capela
ardiam nos vitrais.
Vinha do Céu, da harmonia
que enreda a dor com a manhã.
. Do inferno, à lua, viria,
. coral de Deus e Satã.
QUENTE,
O TEU CORAÇÃO QUENTE
Quente, o teu coração quente
pulsa no lusco-fusco.
Palpita em toda a casa
deserta que nos vê.
Galga as sacadas altas,
corre nas avenidas.
É o silêncio do amor
que abre as veias na tarde…
Quente, o teu coração quente
é uma estrela no escuro
que a pele das tuas mãos
prolonga em minha pele…
Quem te amou e é já morto
renova a primavera.
Oh! doce comunhão
de desejo e infinito,
de saudade e de céu,
de paraíso e grito!
Água clara e tremente
a boca, a sede, a fonte.
Flor de sangue à corrente
o teu coração quente.
SUBI
Subi nas angústias
de tarde sem voz.
Então quis-me em fontes,
em ventos, em cantos,
de pássaros tristes,
em tranças de prantos
pousados, à hora
que fogem de nós…
Subi na alegria
dos altos caminhos,
por serras tão frias,
por naves tão claras,
que via, de longe,
as terras dos homens:
barragens, muralhas,
comboios e searas.
Subi, noite velha,
com os mortos antigos.
Mais alto que a estrela
e em espaços de Deus.
E agora, tão alto, Senhor!,
quem me acode?
Não quero descer,
que os mortos são meus.
Subi na aridez
de tudo ter visto.
– Meus olhos terrenos,
quem é que os cegava?…
E ouvi! Fui tocada
do gesto de Cristo!
Então vim à Terra
morrer como escrava.
RECUSO OS PASSAGEIROS
Inquieta ou não inquieta,
contigo sou completa;
mas sofro de ser toda
tão perto e ao meu alcance.
Por isso é que me entrego
como um pássaro cego.
Por isso é que me afasto
de mim. E no teu rastro
vou às tardes de além,
às ruínas do mar
e bebo no teu sopro
as pérolas e o orvalho.
Montanhas de outros dias,
respiro-tas na almas.
Viagens de outros céus,
estendo-as nos teus dedos.
Recuso,
os passageiros com que aqui me cruzo.
Ignoro,
o sensual metal das vozes longas…
Morro anônima e doce
em teu amor e envio
ao infinito rio que te trouxe
o infinito aceno
dessa infinita posse.
NADA QUE TIVE ERA MEU
Nada que tive era meu.
Perdi estradas, perdi leito.
Na pedra aonde me deito
nada fala de alvos linhos.
Se com cegos me aventuro,
a caminhar rente aos muros,
é que meus olhos impuros
sonham. Cristo nos caminhos.
Nada que tive era meu
e o corpo não quero eu.
Podia servir de embalo,
mas serve de sepultura.
Cemitério de asas finas,
tange e plange aladas crinas,
canto de praias sulinas
de infinitas amarguras…
DONDE VEM?
Entre os pares dançava de batina escura.
Na penumbra inquieta, via-o de soslaio.
Criatura dúbia, ínvia criatura,
coração ao vento, olhos em desmaio.
Traz uma mensagem. Não a quero ouvir.
Donde vem? Eu sei; mas não vou dizê-lo.
Tem um nome velho pra deitar no lixo
mas ressoa risos em salões de gelo.
Donde vem? Não sei! Na verdade, eu sei?
Que sabemos nós, cegos e medidos?
Porque estremecemos de pavores e brilhos
muito bem sentados, muito bem vestidos?!…
*Poemas do livro “Poemas”, Livraria Bertrand.