Denise Emmer Dias Gomes Gerhardt nasceu no Rio de Janeiro, a 18 de junho de 1958. Poeta, compositora, cantora, violoncelista, é filha dos escritores Janete Clair e Dias Gomes. Apesar de ter sido primeiramente conhecida por seus trabalhos musicais, também ganhou notoriedade pela sua vasta obra poética. Ganhadora de várias premiações literárias, venceu, por exemplo, o prêmio de “Melhor Poeta Jovem” da União Brasileira de Escritores (UBE), em 1988; o do APCA, em 1990, o “José Marti”, da UNESCO, de 1994, além do Prêmio ABL de Poesia, em 2009.

CANTIGA DA ESTRELA BARCA

Estrela barca
revela-me
o lado
mais longe
do triste
lado
da noite.

Louva-me
estrela branca.
Boneca antiga
amiga
de minha
janela
chuvosa.

Leva-me
agreste rosa
do agreste que é
celeste,
de saia de linho
espinho
da velha
madrugada
velha.

Onde dorme,
estrela bela,
aquele
que se despedaça
e se embriaga
constante,
por um espaço
de mim?
Eu também
me desmorono
nas terras
de minhas curvas.

Fala-me,
estrela muda!
Por que
só transpareces?
Odeio-te pois
que me esqueces
por essas
ruas
da Terra.

Conta-me
deusa das contas,
em que travesseiro
de pontas
descansa esse moço
aquele,
que me traz
e me transporta
do mar e rasgo profundo
ao infinito,
pé do mundo.

CANTIGA DA NOITE MÁGICA

Redes mágicas aquelas
que ondulavam meu sono,
luas presas nas paredes
lado a lado em abandono.

Você outra lua morava
por trás de uma porta fria.
Na quina do claro dia
você dormia nascendo.

Magia o raiar dos galos
contra-cantando navios,
o rio embrulhava lendas
enquanto árvores cresciam.

Rompia-se a madrugada
você outra lua habitava.
Quisera fossem meus deltas
aguardando sua lancha.

O RELINCHO

Ele relincha em madrugadas como um violoncelo verde
e voa sobre os alqueires perdidos do seu sonho

relincha como o fogo que incendeia bíblias
áridas cantigas de fundos de desertos

e chamará decerto as suas éguas nuas
que plenas de desejo galopam sobre a Lua

imaginando o santo azul adão e apolíneo
estrelo equino de sete patas mágicas

relincha trágicas históricas de amantes
enquanto o mal do amor se alastra esvoaçante

e atinge a calmaria dos céus inalterados
cavalos falos movimentando o mundo.

DA MORTE

Os mortos não sobem aos céus
nem elevam-se abstratos
tornam-se apenas retratos
lado a lado nas paredes.

Retrato do avô imóvel
austero e silencioso
do tio tuberculoso
que esquivo me espia.

A avó já está fria
mas me olha com ternura
tece uma colcha escura
para as bodas da família.

Mortos não sobem trilhas
de inconsistentes arranjos
não viram anjos nem brigas
nem cristos nem assombrados.

Sequer passam dos telhados
sequer vão a outros mundos
quando morrem se enraízam
e se alastram é pelos fundos.

Não lhes peço algum milagre
também não lhes rogo bênçãos
de dentro de seus quadrados
não podem mover o Tempo.

Quadros em salas quietas
emoldurados cinzentos
memória em fragmentos
– às vezes nem lhes percebo.

CENA DE UMA FAMÍLIA

– Meu pai, eu estou aqui,
trago a cidade comigo…
Trago três versos de ódio
e o sangue branco da Lua.

Me guarde da rua, me guarde,
bem dentro do seu casaco.
Senão as estrelas eu mato
e depois a alvorada.

Desçam, meu pai, minha mãe
dessa impossível escada,
ascendam a vela antiga:
eu sou a amiga que chega.

Desliguem o botão, desliguem,
religuem o mundo na sala.
As árvores amam baixinho
enquanto explodem crianças.

O ESTUPRO

E pôs-lhe o caos no ventre anônimo
pôs-lhe o antônimo, o crepúsculo
plantou o susto em seus estranhos líquidos
quase um horror uivando para os muitos.

Ignóbeis, alheios sem resposta
os que do alto assistiam
e ouviam explosões de suas vísceras
enquanto o outro nadava nas delícias.

Este que arrotou-lhe o gás de sujas fábricas
e que implantou em seu útero branco
a sordidez dos falsos santos
e o instante atroz dos suicídios.

E o lamento seco dos presídios
e toda a angústia dos humanos
o óleo azul dos oceanos
e a decadência lenta das famílias.

O que haveria em tal motivo
de tão lascivo para arrancar-lhe as vestes
porque não em solitário anonimato
foi exorcizar os seus assassinatos?

Sangrar a mãe talvez quisesse
na névoa turva de seu inconsciente
morder as tetas de uma deusa ardente
sorver a luz da virgem transparente.

Talvez quisesse em seus subterrâneos
rolar os crânios dos antepassados frios
mover sombrios barcos sem futuro
abissal escuro de sua consciência

A noite clara dos incestos
revela a nua fêmea em desatino
qual uma Lua na mira de meninos
com o açoite de mil atiradeiras.

Exposta então de todas as maneiras
o corpo inerte a alma debruçada
sobre a murada por onde passa o tempo
– número a mais na vil aritmética.

Ficou assim no passo de seu fundo
como se entrasse nele o submundo
a substância trágica e bela
de um cão bastardo a implorar infância.

Germens aquáticos embrião fantasma
não sei se haveria a confluência mágica
do óvulo e seu remo quando amanhecem
ou quando empalidecem à cruz dos homicídios.

LINHAS CRUZADAS

Anda o pássaro
dentro da nuvem

Voa o menino
dentro da casa

Nada a prata
dentro do vidro

Brilha o peixe
dentro da água

Pinga a anágua
dentro da saia

Balança a chuva
dentro do vento

Gira a laranja
dentro da louça

Apodrece o mundo
dentro do espaço

Corre a cobra
dentro da jaula

*Poemas do livro “Poesia Reunida”, Editora Ediouro, 1997.