Jorge Reis-Sá nasceu em Vila Nova de Famalicão, Portugal, a 9 de abril. Poeta, escritor e editor. É, desde 2013, consultor editorial, colaborando com diversas instituições e editoras. Como escritor publicou vários livros de poemas e de narrativa, como os romances Todos os Dias (2006) e A Definição do Amor (2015). Colabora frequentemente com a imprensa, tendo sido cronista das revistas Sábado e LER. Co-organizou com Rui Lage a antologia Poemas Portugueses, uma panorâmica de oito séculos de poesia portuguesa. Venceu em 2023 o Grande Prémio do Conto Branquinho da Fonseca da Associação Portuguesa de Escritores com o livro A Hipótese de Gaia, publicado no ano anterior.

Embalar o Mar

E se eu me sentasse na areia, em contemplação?
Como me aconselhou o médico há pouco mais
de dez anos, era eu um corpo juvenil e insensato
vendo a vida do pai apagar-se, dissolver-se nas
paredes assépticas de um hospital. Ele chamou-me
ao lado, à minha insistente pergunta o que podemos
nós fazer senhor doutor, o que podemos nós fazer,

ele respondeu vá sentar-se junto ao mar, vá ver o sol
cair no horizonte, inspirar o som das ondas a plenos
pulmões. Não houve, depois deste conselho, dia que
passasse em que eu, sentado na areia em contemplação,
não me lembrasse desse médico apaziguador. Não nesse
dia agoirento de Dezembro, em que a minha ânsia filial
lhe esconjurou as palavras: depois, quando a morte
chegou inevitável e tudo o que podíamos fazer era viver.

Vou embalar o mar nos gestos e nas palavras do meu pai,
sentado na memória da nossa viagem à Nazaré e imaginar
ser possível voar se saltasse inexcedível do penhasco que

guarda a cidade do vento norte. Sabe, leitor, que voei: cada
poema é um salto no vento que vem do mar alto, percorrendo
como uma gaivota o céu sobre a cidade e embalando o coração
ao som das ondas e da voz que a memória permite ainda
e que é do meu pai.

Em Todos os Jardins, uma Borboleta

Estou entre criança e leio um conto que não escrevi.
Não há voz que lhes interesse, nem mar, nem estrada
por onde comece eu a procurar de um filho. Naufrago
em cada palavra, riem-se, estabelecem limites à minha
tentativa e, conscientemente, sei-o, trazem para os olhos
a infância entre a lavoura e o rio que, lá em baixo, corre

rumo ao destino. Estou entre a juventude que escreve
nos exames a prova de um futuro, engenheiros, doutores,
arquitetos, lendo Sophia ao ritmo das figuras de estilo em
vez de a saber pousando um chá e mudando em poema um
autógrafo na Travessa das Mónicas. Que interessa a anáfora
que parece cântaro entre todos os jardins que me obrigam
a analisar? Em todos os jardins, uma borboleta. Antes a
língua e a sua festa, Cesário lido como quem canta, não a
mulher e o seu lugar nos versos que escreveu. Acaso
que se lembrava Cesário lido como quem canta, não a
mulher e o seu lugar nos versos que escreveu. Acaso
que se lembrava Cesário de retratar mulheres nos seus
poemas com uma finalidade calculista? Assim eu o não
faço nos versos que repetidamente escrevo, quero antes
salvar cada palavra com as crianças onde naufrago como
quem salva o mundo num verso e numa lembrança.

Poema em Prosa
.                                                              ao António Lobo Antunes

Tive um encontro de Verão com o senhor José Fontinhas.
Eu, o Pina, o Lage, tantos que têm vazio o coração pela
falta de novos versos. Foi pelas seis da tarde, a água do
Douro continuava em luta contra as ondas, na foz. As

palmeiras encostadas ao vento e, mais uma vez, o auditório
pequeno para tanta saudade. Tive um encontro, chamo
José Fontinhas ao telefone, por favor, gritava o empregado
no Piolho há quarenta anos, contava o Pina. Ele, reverente

ao Poeta pregava-lhe a partida mais inominável – a da
identidade. O dito José sentado na esplanada, contou,
chamo José Fontinhas ao telefone, por favor, o Pina
na cabine espreitando o olhar impávido, o sorriso

invertido de ex-José, nosso Eugénio. A identidade é
uma coisa nossa, constituída com anos e anos de visões
ao espelho. O senhor José tinha morrido quando matou
o pai, o senhor Eugénio tinha nascido do amor à mãe. Mas

faltou tanta gente aos ciprestes do cemitério. Pensei
que as vendedoras do Bolhão deixariam os verdes, que os
rapazes da foz que ele tanto amava se chegariam em tronco
nu de mais um salto desde o cais da Ribeira. Que as borboletas
viriam em enxames de cor pousar na urna e esconder
o castanho da madeira nova. As árvores abanando as nuvens
junto à foz e o Pina a contar da morte lenta do nosso poeta.
Aponto uns versos pedindo ao rio que desista de afrontar

o mar. E sigo dizendo sílabas ao som das frases do senhor
José, lendo, quarenta anos depois, os poemas que uma nova
identidade criou. Encontrei no Verão o senhor Fontinhas.
Hei-de ir a Lisboa bater à porta do senhor Antunes.

Astray
.                                                                  na Feira do Livro de Famalicão

Deambulam livros pela feira como corações ao alto,
ou aquele animal de sorriso pendente à entrada da tenda.
Passam de mão em mão entre leituras iluminadas
de uma frase, cada um de seus corredores guardando
mais uma palavra pala alumiar nosso destino. Deambulam

escorreitos; e entregam ao pequeno animal, último
leitor de cada um, o universo vadio da sua literatura.

Canção com Gatinho Dentro

.                                                                      à Adriana Calcanhotto e ao Ferreira Gullar

Gullar é nome de poeta em estado de rosa,
É nome do homem concreto, neo-concreto e concretizador;
É nome de gente que não está para bancar à prosa,
Que escreve versos ao gato Gatinho e que são de amor.

Adriana é nome de poeta em estado sol,
Dó, ré, mi, fá – é nome de menina e de beleza;
É nome de gente tão linda como este dócil caracol
Quando sai da casca com uma única certeza:

Cantar os versos do concreto Gullar,
Do amor do poeta pelo gato Gatinho.
Cantar mais versos para a criança cantar
Ou para os mais crescidos só um bocadinho.

Na Morte de Eugénio de Andrade

Sabes, Jorge, quantos poetas vão escrever versos inúteis
porque morreu um pai e a orfandade é uma coisa que dói?
Então porque o fazes tu sem respeito nenhum pelo sorriso
invertido com que o Eugénio te agraciava as visitas? Da

orfandade sabes tu o que dizer. E disseste-o sem pudor
pela mãe que, viúva, leria os teus versos, pelo irmão que mais
órfão do que tu os sabia também seus. Não que o Eugénio

tivesse sorrisos para outros – que não tinha – mas porque
depois de algum tempo era assim que o querias, zangado
com tudo e com todos, apenas pensando naquele banco
junto ao jacarandá de onde acabou partindo para o seu prado.

Tyranossauros Rex

Fecho os olhos, trago os cães como répteis extintos junto à mão,
afagando o pêlo branco, o crânio pendurado ao ar, balouçando,
de tão grande. Chamava-se Rex e tinha um jardim enorme onde
correr. Quero lembrar que lhe fazia as festas entre os ensaios da

adolescência, que o medo desaparecera desde que o Miguel
e o Joel disseram ele não faz mal. Quero lembrar que é
possível estimar um dinossauro como quem estima um peixe
no aquário, abrir a boca vezes sem conta na água e nada

aos sábados no meio do jardim com o maior cão de peluche
que a carne e o medo dos dentes permitem. As garras de
um predador são para corromper a presa; as de uma animal

de feições tão gentis, mesmo que de porte tão monstruoso,
para saltar aos ombros e rodar entre as folhagens do Outono,
deitados e crianças no meio do jardim.

*Poemas do livro “Livro de Estimação”, edições Quasi, 2006.