Eduardo Lizalde nasceu na Cidade do México, México, em 14 de julho de 1929. Um dos mais destacados poetas mexicanos do Século XX, foi membro da Academia Mexicana de la Lengua e diretor da Biblioteca de México José Vasconcelos. Foi agraciado com o Prêmio Internacional Carlos Fuentes em 2016. No Brasil, só em 2011, foi publicada a antologia “O Tigre em Casa e A Caça do Tigre”, que reúne poemas escritos a partir de 1970.

Eduardo Lizalde morreu aos 92 anos, em 25 de maio de 2022, na Cidade do México.


ZONA CENTRAL

As nádegas de uma fêmea bem construída
são obra capital da natureza.
Insondável mistério.
Por que são belas desse modo inquietamente,
que cega inteligências,
oprime povos, excita pincéis,
muda o curso do tempo
essas duas nádegas?

Dois puros promontórios de carne inocente,
cuja proporção e forma ninguém estabeleceu.
Duas dunas que atraem pelo que anunciam:
os dois sexos, inócuos ocos, vãos invisíveis,
por que impulsionam à vertigem?
Nunca o saberemos:
mas pode-se mudar de partido político,
de deus, de religião, ao descobri-las,
assim seja na Playboy.

PROFILAXIA

Os amantes se amam, de noite, de dia.
Dão aos sexos lábios e aos lábios sexo.
Chupam, beijam e lambem,
comentem com seus corpos as indiscrições
de amoroso rigor,
molham, lubrificam, melam, agradecem.
Mas, ao concluir o assalto,
cada um escova os dentes com sua própria escova.

DEUS TE DÊ SORTE

Uns deuses absurdos,
curiosos e desesperados,
dispendioso e contemplativos,
desocupados e maliciosos,
me beneficiam do alto
com as maiores joias.
Como chega a minhas mãos,
fora de temporada,
tão perfeita beleza?
Eu não tive méritos
para tal privilégio.
Excede meus prognósticos a graça recebida.
Eu celebro.

*

Tem ela certa classe de beleza
classificada em altos círculos
como uma perniciosa, pura deformidade,
um câncer louco de aparência benigna
e mortais efeitos.
Uma beleza assim e um mongolóide
são igualmente monstruosos.
Alto é o preço.
Deus permita ao saudável contrair o vírus.
Já disse o florentino:
Ecce Deus fortior me…
Eis aqui um Deus mais forte que eu,
vem vencer-me.

Eu, simplesmente, defendo-me do golpe,
me movo no sentido de seu disparo,
faço apenas o rolling.

CARTILHA DE LÚCIFER

Tudo o que é edificante é reacionário
(que se observem os efeitos).
Somente a aliança com o diabo
leva até deus,
funda seu reino altíssimo.
Não há forças mais ativas
que as forças do mal.
Não há anjos mais puros que os caídos.

O signo de Lúcifer, não o de Caim,
nunca o do pobre Assis
e muitíssimo menos o de Abel.

SOCRÁTICOS E ABERRANTES

Como sabemos que esta sedutora,
esta criatura indescritível,
é uma bela moça de verdade,
um exemplar genuíno de perfeita,
de única beleza,
se não sabemos o que é o belo em geral?

Não é o saber, Hípias gracioso,
o que permite com certeza e gelo
descobrir a carnosa, incerta luz de tal ternura:
uma tensa coxa, um peito que levanta,
um doce entreperna,
esta garupa apertada,
a arca desse corpo, um rosto que deslumbra.

É a feliz dor que ele produzem, sem sabê-lo,
em fibras, vísceras ocultas,
líquidos de adâmica inocência.
O universo é oco, está vazio.
Não existem modelos superiores, Hípias.

Somente existe esta beleza ou aquela.

DO SENTIDO DO MUNDO

O que é o mundo está no mundo:
árvores árvores,
pássaros pássaros.
O que o mundo e seus seres significam,
não está no mundo, não é deste mundo.
Outra coisa seríamos,
outro lugar ocuparíamos
se alguém supremos houvesse dado signo a nossos atos,
avaliado nossos gestos,
codificado nossas plenitudes.
Nada significamos, somente somos,
homens homens,
assentos sentantes,
camélidos camelos,
poeirento pó.
Coisas do mundo.

*Poemas do livro “O TIGRE EM CASA E A CAÇA DO TIGRE”, editora Alameda, 2011.
Tradução de Plínio Junqueira Smith.