Mabel Veloso nasceu em Santo Amaro da Purificação, Bahia, a 14 de fevereiro de 1934. Poeta, educadora, escritora, compositora e cordelista, é filha de Dona Canô, mãe da cantora Belô Velloso, irmã da cantora Maria Bethânia e de Caetano Veloso. Publicou o primeiro livro de poesias intitulado “Pedras do seixos”, em 1980, e desde então lançou 35 obras entre elas as biografias da Irmã Dulce e as biografias de Caetano Veloso e Gilberto Gil, integrantes da coleção “Mestres da Música no Brasil”, além de “O sal é um dom: Receitas de Mãe Canô” (a matriarca da família Veloso, pela Editora Nova Fronteira, em 2015). Em 2020 exerceu a função de professora de poesia e contadora de história na Faculdade da Felicidade, ISBA (Instituto Social da Bahia), em Ondina, para pessoas idosas.
distância
A minha cama cresce
depois da separação
parece que agora existe
entre nós dois a distância
que separa o céu do chão.
bancos
A ninguém pode deixar de interessar
os olhos de uma mulher
que procura o filho
que brincando numa praça se escondeu
atrás de um banco.
A ninguém pode deixar de atormentar
os olhos de uma mulher
que procura o filho
que fugindo, numa praça se escondeu
por assaltar um banco.
A ninguém pode deixar de comover
os olhos de uma mulher
que encontra o filho
no fundo de uma cela, arrependido,
sentado num banco.
virou Maria vira-lata
Aquela pobre mulher
que dizem já foi bonita
morava até em sobrado
e tinha vestido de fita
é agora um trapo humano
arrodeada de cães
a quem agrada e entrega
seu carinho, sua ração.
Nos passos de ida e volta
de um lado para o outro
os cães a seguem e farejam
como a um pedaço de osso.
A noite, o corpo cansado
vai procurar um repouso;
e o cobertor que encontra
é o pelo dos seus cachorros.
Serafim-Será
Serafim é preto magro.
Parece, pelos seus traços,
que nunca teve beleza.
Vivia sempre lutando
para ganhar sua vida
pedalando a bicicleta,
pintando paredes, portas,
correndo pra lá, pra cá,
trabalhando sem parar.
Um dia cai do andaime
com a cabeça no chão
e seu juízo lhe foge
e lhe roubam a bicicleta
e roda a sua cabeça
e roda seu próprio ser
e assim fica perdido
sem saber como viver.
Começa a falar nagô
a rezar contra a mofina
sempre de hora marcada
para o mal se afastar.
meu Avô
O meu avô foi poeta
como me contam seus versos.
Fico feliz em saber.
É bom saber que a estrada
que preparou nossa vida
foi uma estrada de sonho,
de amor, de fantasia…
Todo poeta é meio doido
e só deixa como herança
amontoada esperança
pra gente viver cantando
mesmo as coisas do sofrer.
Lala
Por que nesses olhos negros
que piscam e olham em redor
que parecem magnéticos
que parecem adivinhar
por que às vezes percebo
uma tristeza profunda
que não sei como lá dentro
deu para ela penetrar
será que eu sou a culpada
desses momentos tão tristes
em que seus olhos tão negros
ficam mais negros e tristes?
fim
Em que pássaro fui transformada?
Para que virei pássaro
De asas inúteis?
Gaiolas quebradas…
Prisão interior
Onde o jardim?
O sol? a flor?
Agoniza em meu bico
O último canto.
Caem do meu corpo
As última penas.
dor de cão
Deixe eu acariciar
teu pelo.
Não rosne.
Não te afaste.
Deite aqui.
Reparte comigo
o teu osso.
Eu te juro
que não divido
contigo
a minha mágoa.
*Poemas do livro “Poesia Mabel”, Coleção Laranja Original, 2013.