José Carlos Capinan nasceu em Esplanada, Bahia, no dia 19 de fevereiro de 1941. Poeta, músico e médico, é imortal da Academia de Letras da Bahia e presidente de honra do Museu Nacional da Cultura Afro-brasileira, em Salvador, onde vive. É autor de diversos livros e da peça Bumba meu boi (1963), musicada por Tom Zé. Em mais de sessenta anos de trabalho artístico, publicou diversos livros de poesia, e escreveu letras para canções de Gilberto Gil, Edu Lobo, Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Jards Macalé, Fagner, Geraldo Azevedo, João Bosco, Moraes Moreira e outros.

Poema intencional

Há em cada substância a sua negativa
E a possibilidade de processo

Processo inexorável a ir ao fim
Meta a ser de pão e flores

A rosa será uma outra rosa
E nós já não seremos

Vejo nos olhos tristes de Maria
Um filho possível

Vejo na árvore antiga do parque
Uma cadeira, uma muleta, mas sobretudo um aríete

Descubro na boca angustiada
O hino pronto e pesado

É inevitável o acontecimento
Mas procuro ser um elemento

Carrego em mim a utilidade
Utilizo-me para um bem maior

Tenho que colher a rosa
E transformá-la

Tenho que possuir Maria
E dar-lhe um filho

Tenho que transformar a árvore do parque
Em cadeira, em muleta mas, sobretudo, e aríete

Tramas

Rosas, sinais ocultos, signos
Inscritos códigos em outras pedras
Preciosas tramas, caminhos
Provas inúteis de estar aqui
Ante um perfume, ante uma nuvem
Quando estamos ante uma cobra
Ou ante os gestos das substâncias
Como esses signos que o vento põe em rotação
Quase quando estamos ao fim inalcançável das rotas

Autopoema

É um poema como seria um grito
Repente e alto sobre o mundo exposto
Gratuitamente como as mulheres
Que anunciam os seios os lábios as coxas
Para um amor transitório e inútil
(Pois em verdade não amamos)
É um poema como seria uma estrela
Impiedosamente destroçada
No orvalho que ainda se dependura na rosa
Na rosa… na rosa… na minha rosa de infância
Que destruíram com uma máquina de desmanchar
.       jardins
É um poema, como eu poderia baixar os olhos
E chorar… e chorar como fizera antigamente
Entre as boninas e pensando em mim
Como criança que não brincara

É um poema, triste poema de aurora
Hoje primordial de onde partiram os trovadores
A manusear um adeus que não dissera a lágrima
Que os seus corações conduzem
É um poema como fora a canção
Revelada sobre o berço onde um corpo
Iniciara perigosamente a vida
Um poema como o morto de uma noite
Em que fora amor a última palavra
Um poema, como a jangada que o mar devolvera
A respingar peixes enquanto a vela branca
Aceita o vento nervosamente

(Talvez uma jangada me trouxera
A voz tragicamente azul de uma mulher
E o suicídio no mar como muitos)
Um poema, como um sonho no salão que preferia
Numa dança primitiva
Um poema, como um outro poema
Tentando sobre uma pedra que o sol magoara
Um poema como um outro poema puro
Que as aves levaram e levaram para um monte
Que as asas aproximam
Um poema, como o instrumento
Que a mão operária utilizou
Um poema como o meu suicídio
De murros dolorosos nos olhos
De onde o sangue vazasse e cobrisse os lábios
Para nenhum lamento
Um poema como todas as coisas
Em processo e as já passadas
Um poema como a luz que cruzara a noite
Incerta ferindo os olhos de sono
Bem certo de que um homem provável a conduza
(Que certeza tenho neste poema?)
É um poema, um grande poema
Um poema triste
Um poema, que me pode salvar e aos homens
Um poema de campo
Bendigo os homens que o semearam
É um poema que não termina
Transmito a mensagem de uma estação onde não chove
Voz de camponesa
Oculta numa igreja que a noite conserva branca
É um poema
Que as mão do mundo o absorvam
Principalmente as das amantes mãos maternas
Porque delas virão os homens e as primeiras palavras
Como as que eu dissera
É um poema, é um revolta
Acumulada pelos que me antecederam
Sob um estandarte rosa que não se consumiu
Embora o tempo passasse como as águas de um rio
Onde lavara os cabelos da amada
É um poema pelos homens
É um poema pelo que passa
É um poema pelos que virão
A viver um tempo infalível que o poema apressa
Enquanto não fumo e aguardo
Com a minha mudez de quem participa
Antes de tudo um poema
Que eu não fiz e me ensinaram

Movimento dos barcos

Estou cansado e você também
Vou sair sem abrir a porta e não voltar nunca mais
Desculpe a paz que eu lhe roubei
E o futuro esperado que não dei
É impossível levar um barco sem temporais
E suportar a vida como um momento além do cais
Que passa ao largo do nosso corpo
Não quero ficar dando adeus às coisas passando
Eu quero é passar com elas
E não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro
E a marca de um abraço no seu corpo
Não, não sou eu quem vai ficar no porto chorando
Lamentando o eterno movimento dos barcos

*Poemas do livro “Cancioneiro Geral – 1962/2023), Círculo de Fogo, 2023.